terça-feira, 14 de julho de 2020

Não perturbe

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Casualmente fiquei sabendo que, há quatro anos, um estudante francês criou um despertador chamado Sensorwake, que acorda pessoas não com estridências barulhentas, e sim com aromas: de croissant (francês o rapaz, né?), café, chocolate, hortelã, grama, folhas, flores e não sei se outros alguns. Rumino lá minhas dúvidas quanto à eficiência do reloginho – terá o olfato tanta moral sobre os poderes do sono? –, pero que me encantó, me encantó. Há muito que uma das poucas utilidades de meu celular é a de me levantar para compromissos, e naturalmente uso música em vez daquele pem-pem-pem absolutamente insuportável dos despertadores; mas mesmo canções escolhidas a dedo berram no meio do sonho quando menos se espera levar um tranco sonoro, o que acaba sendo suavemente traumático (e nos faz garrar ressentimento das músicas preferidas, pela agressão). Normalmente funciona para fins de acordamento, porém é uma eficácia sem carinho: amanhecer é tarefa complicada, não pega a gente de boa vontade e exige mais cuidado na transição entre mundos. Empregar cheiros variados me parece uma alternativa simpática, plena de delicadeza – principalmente quando já são cheiros cafeinados, matutinos, que talvez de cara façam o dia soar apetitoso. 

Lembro-me de outra opção despertadora igualmente delicada, no filme Se eu fosse você: a mãe, Helena, acordava a filha soprando sobre ela, o que provavelmente comoveu mais minha memória do que todo o resto do longa (que não é ruim, aliás). Um perfume alegre, um bafejozinho de brisa – não são formas muito mais amorosas de convidar alguém ao desadormecimento, de não azedar com gritos a manhã, o dia? Pois então; saber da invenção do francês e invocar as lembranças do filme me puseram imaginando outras doçuras acordantes, para deixar a reputação do sol intacta. Beijos, por exemplo. Beijos nos cabelos, testa, orelhas, olhos, lábios (se, evidentemente, há intimidade que os permita como ternura e não como invasão). Mãos nos cabelos, também: com a mansidão devida, são eficientes no despertar como o são no dormir. E que tal o roçar de cachorros ou gatinhos que rondam na expectativa do café da manhã? Ou a sensação vaga e aromática de chuva no pátio, quintal, janela? Ou uma gotinha de sorvete refrescando a boca? Ou um toque arejado de Vick no peito? Ou um raio morninho do dia desdirecionado dos olhos e canalizado para os braços? Ou um poema lido baixo, baixo, não tão perto do ouvido?

Na mesma linha branda como um psiu: uns passarinhos cantando na vizinhança (contanto que não as maritacas que voam por aqui na fofocagem, insanas). Uma voz não passarinha cantando murmuradamente no quarto. Uma mão pousada maciamente sobre os pés. Uma caixinha de música. Um abraço. Um afago na pele com rosa desespinhada. Um cutuque ligeiríssimo no topo do nariz. Um ou dois filhos se atirando na cama às gargalhadas. Um ou dois pingos d'água nas costas. Uma expectativa – cuidadosamente plantada no episódio anterior – de presente-surpresa. Um ruidozito de bandeja chegando à cama (chegando farta, é evidente). Um vush-vush de cortinas. Um mexer lento de cobertas ou travesseiros. Uma chuva de confetes. Ou a mais orgânica das opções: o naturalíssimo nada – nada além das puras necessidades do corpo de despertar quando já se dormiu inteiro, sem horários que o forcem e o constranjam. Ué, sonhar acordado também pode.

A natureza infelizmente nos obriga a dormir; não me atrai, mas compreendo e aceito. Miltocentas vezes pior é que toda a antinatureza ao redor nos obrigue a acordar. Que ao menos nos seja leve: se se entra no dia como numa vida em miniatura, é preferível, sempre, que o mais macio dos partos nos nasça.

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