quarta-feira, 1 de julho de 2020

Perfeitamente agora

Tempo, perdendo tempo, relógio Foto stock gratuita - Public Domain ...

Hoje faz 216 anos que o mundo ganhou minha adorada, minha bem-querida George Sand, mãe de alguns de meus maiores amores em forma de papel e tinta. Foi também o amor humano de gênios a fio, de Chopin a Musset, o que me parece dizer muito sobre a autora mesma: nenhum coração tão em carne viva é capaz de se enlaçar tamanhamente em outro que não seja da maciez, da extensão do dela. Sand era tão ardente, prodigiosa, terna na literatura como na vida, e é lastimável que tenha ganhado tão poucas traduções em português, em comparação com a fartura da obra. Por algum motivo francamente inexplicável, tem andado um tanto quanto esquecidinha em nosso século, o que amofina um bocado aqueles que acabamos ficando sem grande margem para amá-la confortavelmente em nossa própria língua. 

Me apego forte numa de suas frases que diz: "Nunca é demasiado tarde para seres aquilo que devias ter sido". É um diamante, é um aconchego de escritora nos relembrar que, até prova em contrário, temos todos o mesmo tempo – o daqui para diante. Se já fizemos e acontecemos de tudo em prol de nós mesmos, se já desde os primeiros botões de vida entendemos o que nos cabia ser e nos carrapateamos a toda e qualquer chance de sê-lo, muito bem, formidável. Aplausos da assembleia. Mas não acontece sempre, acontece até pouco, porque: não há vivências bastantes, do lado de fora, para endossar nossas impressões de dentro; ou há vivências que abertamente nos achatam e desencorajam; ou há aquelas que, mais ainda, nos agridem e traumatizam; ou há não opiniões alheias jogando contra, mas circunstâncias sociais outras, prementes, urgentes, esmagantes. Há de tudo, de tudo, para nos afastar de nós – às vezes um mundo inteiro para nos adiar e adiar e adiar até nos convencer de que nos adiamos irreparavelmente; e, no entanto, há também vozes como a de Sand para desmentir essa Síndrome de Estocolmo em que nos enfiamos e mandar a real: oh, please, ainda é hoje, não é amanhã; tome vergonha. Só acaba quando termina. Um dia, um mês em que se seja, na plenitude do termo, é infinitamente maior do que nunca. 

Claro que isso não é desculpa para mal-interpretar o dito e desandar insanamente a fazer besteira (que isso não é ser, isso é destruir-se, que vem a dar no efeito oposto), nem é desculpa para ir embarrigando os projetos por décadas, com a mentalidade torta de que "um dia vejo isso, lá mais para frente ainda não vai ser tarde". Não vai ser tarde – e morreu. Pensar que nunca é demasiado tarde é empurrão de usar no presente, não presta para enviar ao futuro; é para nos motivar onde estamos, não onde estaremos numa realidade imprevisível. Podendo, tendo os necessários ou suficientes elementos (improvisando talvez alguns), a hora é perfeitamente agora: hora de amar com a alma inteira, hora de voltar aos estudos, hora de virar o pai ou mãe que não se soube ser, hora de saber virar filho, hora de mergulhar na vocação que berra nas veias, hora de peitar as velhas fobias, hora de buscar tratamento, orientação, ajuda. Hora de oferecer ajuda. De voltar ao que causava sorrisos, de encarar a sério (no pós-pandemia) as viagens sonhadas, de desatar pendengas, de concluir pendências, de retribuir benefícios, de perdoar estragos, de germinar estradas, de brotar alternativas. É hora; bem right-nowzinho, bem agorinha, bem já. Não é demasiado tarde começar agora, mas é talvez impossível partir de depois.

Se ignoramos nossos prazos de validade, é para que sejamos atentos, porém estreantes perenes: todo dia está igualmente apto para ser o dia do sucesso estrondoso de um nosso eu inédito.

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