segunda-feira, 27 de julho de 2020

O padrão

Balão, Coração, Amor, Romance, Reino Unido

Outro dia, entre zapeamentos, peguei no canal Viva um trechinho do programa Donos da história, que se dedica aos famosos autores de novela globais. O episódio em questão era com Ricardo Linhares, e lá pelas tantas o escritor recordou a reação negativa de uma parte do público ao casal Teresa e Estela, vividas por Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg na novela Babilônia. Na realidade – especificou Linhares –, a rejeição não era direcionada exatamente à existência do casal (o que seria, de fato, o cúmulo dos cúmulos em pleno ano de 2015 d.C.), e sim ao beijo trocado pelas personagens no primeiro capítulo, como aliás fariam quaisquer pessoas que vivessem juntas e se amassem. A partir do grupo de discussão que é frequentemente organizado para testar a recepção de cada trama, o autor acabou percebendo que alguns espectadores simplesmente não queriam "ter" de lidar com as reações e perguntas dos filhos, em vez de, como sublinhou o entrevistado, aproveitarem as deixas dadas pela ficção para falar com honestidade e abertura sobre homoafetividade, corrupção, violência e qualquer outro assunto que faz parte do dia a dia. (Com o adendo de que, e aqui mais ou menos parafraseio Linhares, as pessoas parecem achar mais fácil explicar uma briga do que "explicar" o amor.)

Fico igualmente perplexa com a perplexidade dessa fatia do público, que provavelmente nunca se sentiu desconfortável ao prestigiar, mesmo junto aos filhos pequenos, desenhos como Tom & Jerry, Branca de Neve ou Cavaleiros do Zodíaco, em que os personagens se perseguem, agridem, achatam, socam, enganam, envenenam, explodem, esmurram, assassinam, furam o olho e outras tantas doçuras; ou então filmes suaves como os da Marvel e DC, em que metade das cidades é destruída no processo de salvar a outra, e heróis e anti-heróis fulminam, traem, cortam cabeças, metralham, arrancam membros, tudo de boinha. Gente criando teias (não estou falando das do Peter) para dominar o mundo, gente eliminando 50% do universo, gente tentando matar o irmão e a irmã, espalhando monstros, extraindo retinas, promovendo genocídios – tudo superlúdico, pra matar o tempo comendo pipoca. Mas amor, não; amor é complicado e perigoso demais da conta. Vai que a criança que nunca tentou imitar o Loki e atirar o maninho do alto do prédio acaba logo sendo influenciada por um gesto de carinho entre dois homens?...

Por favor, por favor, não sou NEM UM POUCO a tia chata que fica patrulhando animações e heróis, bem ao contrário: vi tudo que havia a ser visto, sempre adorei os Cavaleiros (tenho bonequinho e revista até hoje), passo o rodo em todas as produções Marvel e DC e amo especialmente o Loki e o Coringa – o que já indica que, né? pois é. Mas justamente por isso, por saber que crianças e adolescentes criados em ambiente saudável e providos de amor por seus cuidadores são perfeitamente capazes de compreender que o ser humano (ou criaturas feitas para representá-lo) tem muitas questões, muitas facetas, muitos sentimentos, muitos comportamentos, é que me pergunto por que pais e mães acreditam serem os pequenos tão incompetentes para entender nosso lado mais bonito. Como é que crianças tão cedo expostas – apenas na ficção, esperamos – à ganância, à inveja, à raiva, à vingança podem não ter "maturidade" para presenciar a ternura? Se veem socos, por que estranhariam beijos? Se os pais não lhes ocultam os tapas na cara dados na tela, por que lhes ocultariam as mãos dadas vistas na rua?

Há de ser unicamente por preguiça ou ignorância que os responsáveis se sentirão ameaçados pela realidade que deveria ser a mais natural aos pequeninos. "Ah, mas você precisa entender, eles são de outra geração..." Não preciso entender nada; quem nasceu em outro tempo, se continua vivo hoje, recebe as influências e informações de hoje: está aí na mesma internet, usando as mesmas redes sociais, com os mesmos especialistas falando na mesma TV. Compreende-se (embora obviamente não se aprove) que nasça preconceito onde há má distribuição de conhecimento e falta de acesso; porém, uma vez havendo oferta e acesso, calam-se as justificativas, emudecem as fugas. "Ah, mas é a religião da pessoa." A religião o caramba: NENHUMA religião que faça jus ao nome prega qualquer espécie de exclusão, ao contraríssimo, toda religião é fundamentada em acolhimento e amor – ou NÃO É religião at all. E não digo isso de orelhada; digo-o como católica que sempre fui, alguém que sabe que Jesus nunca dedicou uma linha a condenar demonstrações de afeto entre adultos conscientes. O que crianças podem testemunhar entre casais heteroafetivos é igualzinho ao que podem testemunhar entre os homoafetivos: carinho, ternura, companheirismo, cafuné, beijinho, cumplicidade. Elas são rápidas e extremamente eficientes em abraçar o amor, em reconhecê-lo e compreendê-lo, já que nada se parece mais com o estado original infantil de aceitação, de olhos limpos e abertos para a beleza do mundo, de predisposição para ouvir, apoiar, proteger. Perceber. Pensar.

Para jovens seres humanos que podem contar com a base forte, atenta e esclarecida de seus tutores, o amor é o padrão. O preconceito, sim, é a aberração e a verdadeira violência.

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