sábado, 25 de julho de 2020

As perguntas ingênuas

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"Como viver – me perguntou alguém numa carta,/ a quem eu pretendia fazer/ a mesma pergunta.// De novo e como sempre,/ como se vê acima,/ não há perguntas mais urgentes/ do que as perguntas ingênuas." São os versos finais de "Ocaso do século", da poeta polonesa Wislawa Szymborska (infelizmente não sei dizer quem fez a tradução). E como discordar? Não apenas concordo, mas a partir de agora me agarro nessas estrofes para toda ocasião em que me sentir tola tola tola de fazer perguntas tolamente ingênuas, as grandes, as gerais, as que muito me interessam. Gosto dos assuntos assim diretos e desvendados, puros, nus, e se doravante me acusarem da velha ausência de complexidade – "as coisas não são tão simples, nada é tão fácil, é tudo muito mais complicado que isso" – vou meter o avesso da carteirada: não é minha meríssima pessoa que está dizendo, é uma Nobel de Literatura formada, melhor do que eu. 

Se na vida e contra a morte só há urgência do que é realmente básico (ar, água, alimento, sangue, cura, calor, amor), assim também é nos temas e nas questões. As coisas são tão simples sim; os embolamentos adjacentes são labirintos mentais que criamos para esconder nossos Minotauros. As excessivas complexidades que enfiamos na trama sofisticam a peça e distraem a vista, mas "a base é uma só", como no samba do Tom: a base é termos passado milêêêênios pisando uns nos outros em vez de sabiamente trabalharmos em equipe. Por quê? (pergunta sumamente ingênua que já demandou infinitas toneladas de psicologia, sociologia, psiquiatria, economia e todas as demais ciências disponíveis, e a que talvez, em resumo, uma suprema ingenuidade respondesse:) porque recebemos, com o raciocínio, a consciência do eu, e pelo tempo de autoconvívio acabamos achando muito especial esse eu – tão especial que os outros eus nos parecem indignos de ser equiparados a ele. Desse desvirtuamento original do pensamento começa toda a mixórdia. 

É uma síntese porca, admito, porém bate como uma luva em cada um dos questionamentos que nos fazemos com pureza d'alma, quando estamos em modo de inocência: por que não existe uma renda mínima universal, se todo humano nasce humano e já mereceria ter o indispensável garantido pelo simples fato de ter nascido humano? Por que uma Declaração de Direitos não se tornou uma lei óbvia para todo o planeta? Por que a contemplação a um sagrado direito de sobrevivência alheia soa como ameaça ao nosso supérfluo? Como nossos olhos podem achar plausível que alguém ganhe 19 bilhões num único dia, apenas porque vários alguéns confiam e investem números em seu valor abstrato, enquanto há outros tantos milhões na rua morrendo de fome concreta? Como pode parecer razoável POR UM SEGUNDO que uma pessoa tenha 37 imóveis e outra durma sob o viaduto? Por que é relevante, na divisão social, que nossa pele esteja mais ou menos preparada para o sol? e, nesse caso, por que justamente os menos preparados são há tanto tempo considerados "superiores"? De onde surgiu a ideia cretina de avaliar a capacidade profissional (ou qualquer outra coletiva) de uma pessoa a partir de quem ela beija? Por que os maiores defensores da "meritocracia" costumam ser precisamente os últimos que abdicariam de uma herança? Por que alguém considera normal que um suposto seguidor de religião baseada no amor pregue ódio, preconceito, destruição e morte?

Como? de onde? por quê? – pergunta nossa cristalina lógica que olha tudo pasmada, perplexa, sem crer que se possa distorcer a razão com a vaidade e a verdade com a opinião. Well: distorce-se. E os eus incapazes de arcar com o fato de que estão no mesmo patamar dos demais, de que não pesam um miligrama a mais ou a menos na balança do planeta (que destroem), de que não têm absolutamente nenhuma prioridade conferida pela natureza, de que vivem dos mesmos elementos e morrerão da mesma morte – esses eus irrealizados, toscos, inseguros, infelizes multiplicam balelas para mascarar sua desimportância, fabricam gritos e incoerências para maquiar sua fuga do racional. Gostaria de lhes ter alguma pena, mas guardo para suas vítimas. Ando sem possibilidade de lidar com quem latifundeia o mundo de absurdos e escapa galopando das perguntas fáceis.

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