sexta-feira, 10 de julho de 2020

V de vaidade

Cebola Alho Produtos Hortícolas - Foto gratuita no Pixabay

A notícia (de maio deste ano) é de uma bizarrice tal que não pude deixar de gargalhar, apesar de todos os esforços da protagonista na direção contrária. Após descobrir uma traição do namorado e a troca de mensagens do maroto com outras gurias, a jovem chinesa Miss Zhao rompeu o namoro e chorou por meia semana, porém não se sentiu lá muito consolada ao perceber a indiferença do gajo – pelo que entrou no modo Revenge, encomendou MIL QUILOS de cebola pela internet e os endereçou ao ex com um bilhetinho: "Você me fez chorar por três dias, agora é a sua vez". Se o infiel chegou a deitar lágrimas de remorso eu não sei, mas imagino que de algum tipo lhe vieram, ao voltar para casa horas depois da entrega e topar com uma tonelada (literalmente) de sacos de cebola aos pés da porta. 

Eu ri, qualquer um riria – o entregador e os vizinhos intoxicados de vapores cebôlicos talvez não –, certamente não tenho pena do destinatário do presente, e ainda assim acho triste que nossa pobre natureza guarde esses impulsos desesperados de retaliação, especialmente no campo sentimental. Se sofri, você também vai sofrer, berra o coração supostamente apaixonado – apaixonado por quem mesmo?... Nós que estamos de fora, na confortável racionalidade que parece gelada mas é a única forma de nos defendermos de um id borbulhento, podemos apontar com calma: apaixonado por si, é evidente. Porque vejamos, desenrolando a lógica: se a pessoa está ou esteve sinceramente amorosa, no sentido generoso e inteiro, vai sem dúvida sentir decepção e raiva (humanum est), mas sem passar ao infligir concreto de dor, dificuldade, humilhação a alguém passível de receber seu amor. Pela outra ponta, se o receptor do sentimento acaba se mostrando um belíssimo dum fela, caso claro de erro de avaliação, aí mesmo é que não vale a pena o investimento emocional de remoer vingança; não era amor, era cilada, nada realmente se perdeu, não era real e bom o bastante para que sua perda justifique o esforço do castigo (é óbvio ululante que não entro, aqui, no mérito de crimes; crimes devem ser punidos, PONTO. De qualquer modo, não é a vítima quem os pune). Resumidamente, ou o relacionamento foi digno – e represálias não são cabíveis –, ou foi uma mentira – e represálias são inúteis. Ou prevalece o respeito ao que já foi bom, ou o absoluto desprezo pelo que já foi tarde. Tudo o mais mora na Cidade do Ego Ferido. 

Buscar justiça, proteção, direitos individuais e dos filhos é sagrado, intocável; mergulhar em trips revanchistas, no entanto – folclóricas como a da moça chinesa ou criminosas e possessivas como a dos feminicidas em potencial –, é mero sangrar narcisista do que nunca foi amor, nem oferecido nem próprio. Nas mulheres, o feedback narcísico raramente ultrapassa a desforra de Zhao em termos de gravidade, mas nos homens o buraco egoico é muito mais embaixo, já que envolve a imaginária defesa não só da autoconstrução como da construção tóxica de gênero. Homens ainda são classicamente encorajados a empreender sem perder, convencidos por gerações de que o planeta lhes pertence com tudo que há nele (mulheres, principalmente), o que os torna bombas-relógio agendadas para a primeira frustração. É dos piores níveis – seríssimo, mortal, pesado, sistêmico – de um lastimável conjunto de níveis de glorificação do EU, níveis já naturalmente deprimentes quando ainda são leves, já nocivos quando se atêm ao quintal do pitoresco. Um ego sem raízes cai fácil, e cai fazendo estrago e estrondo; como não tem solidez no construir-se, parasita a aceitação alheia e não hesita em derrubar suas bases ao tombar, se estas lhe faltam. Porque o que quer que seja, quem quer que seja, nunca há de ser raiz de quem somos (pode ser no máximo apoio, haste, tutela), uma vez que está fora de nós – assim como o núcleo do sujeito nunca está fora do sujeito. É de seiva própria que nos erguemos, afirmamos, despontamos, crescemos, florescemos dentro. Somos, sim, cuidados, amados, assistidos, regados, adubados por outrem; outros nos nutrem, admiram, medicam, observam – mas ninguém inteiramente nos fabrica. Somos todos mutuamente essenciais sem deixarmos de nos ser essencialmente responsáveis.

Ou poderíamos dizer, melhormente, que somos ou deveríamos ser um acúmulo harmônico de camadas. Como as cebolas.

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