sexta-feira, 24 de julho de 2020

Erosões

Amor Buracos Coração - Foto gratuita no Pixabay

Em sua coluna de ontem no blog hospedado no site do UOL, o psicólogo Dan Josua ilustrava sua ideia central com o caso (real ou hipotético, importa pouco) de uma mulher que, tendo carregado sempre a impressão sofrida da inadequação, era confrontada pelo terapeuta/palestrante com a possibilidade de ter sua dor "retirada". Mas: "Só tem um detalhe. Um dia seu filho vai chegar em casa com uma dor parecida. É um ser humano e em algum momento a vida ainda vai bater nele. E ele vai se perguntar por que foi rejeitado, por que é burro ou por que não é digno de amor. Se eu tirar a sua dor agora, você não vai entender nada do que ele estará falando. Vai sorrir e pedir para ele não pensar nisso. Sentindo-se ainda mais solitário, ele irá para o quarto. Vai fechar a porta para sofrer sozinho. Exatamente como você, seu filho esconderá a dor e a carregará pela vida inteira. Vai se casar e ter filhos e sorrir para a foto – como você. Mas, por dentro, sempre haverá uma luta e uma vergonha de quem se imagina a única pessoa a se sentir desse jeito".

Como podem supor, a mulher da história passou a recusar a renúncia, ainda que imaginária, a seu fardo emocional, e diante dos argumentos do terapeuta é provável que fizéssemos o mesmo. Não se confunda isso, evidentemente, com deixar de tratar uma depressão, um transtorno borderline ou qualquer outro mal similar, que DEVEM ser cuidados com o mesmo empenho de uma diabete ou uma hipertensão, por exemplo. Falamos aqui apenas das dores de alma que não são clínicas nem incapacitantes – e mesmo para essas cabe sempre um acompanhamento psicológico, uma análise profissional; cabe constantemente um retrabalho, uma desopressão, um alívio; o que não cabe é a expectativa de um total desaparecimento. Até porque as dores devidamente controladas, seladas, domesticadas, que sob essa atenta vigilância perdem o potencial de destruir-nos, passam a ser também as dores que nos constroem.

A dor, com o perdão da comparação excessivamente prosaica, nos amolece como o martelinho de carne; uma força descabida aplicada ao martelinho pode despedaçar a substância, porém o peso normal e inevitável das pancadinhas cotidianas nos amacia. Não é que devamos buscar a dor (eu, pelo menos, vim isenta de dotes masoquistas) – mas, uma vez que chega teimosa e involuntária, o melhor que fazemos é refletir sobre o golpe e permitir que nos torne o ego mais tenro. Os nãos da infância, as ausências indesejadas, as perdas que não pedem licença, as lágrimas corridas na escola, os jovens amores não correspondidos, as solidões vividas em silêncio, as incompreensões familiares, as insatisfações corporais, as irrealizações de pequenos ou grandes sonhos: é tudo material do torno que nos molda, é tudo contingência que as almas mais orientadas vestem como experiência – vestem como o traje que não é o esperado vestido da Cinderela, mas que é ajustável a ponto de o portarmos com elegância. Sofrimentos nos escancaram os olhos filosóficos, nos contêm a natureza deslumbradamente egoísta, nos aparam as tendências de autoglorificação, nos aproximam de ser humanos e não criaturas irreais, flutuantes, irritantemente isoladas em torres de marfim.

Por doermos, entendemos o que doem. A dor que nos lanceia ao menos nos abençoa com o efeito colateral da empatia. Como abriríamos braços confiáveis aos outros, se fôssemos aqueles que, para desalento dos Álvaros de Campos que nos cercam, "nunca levaram porrada"? A experiência da dor nos enternece o coração e o colo, nos gradua para o acolhimento, nos diploma para a sinceridade, nos desliga a autossuficiência que afasta como escudo, nos sagra como iguais a serem abraçados e não estátuas a serem adoradas. Paixões certamente brotam da superfície estúpida, mas amores de todas as instâncias só nascem quando enraízam no que temos de muito íntimo, quando envolvem nossos momentos de vida subterrâneos, porções d'alma que pouco receberam (ou se mostraram à) luz. 

Somente as erosões que sofremos tornam únicos nossos relevos e convidam ao estudo, ao passeio, ao encanto. Viramos desbraváveis quando aceitamos lealmente colocar nossas feridas no mapa.

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