terça-feira, 21 de julho de 2020

Ridi, pagliaccio

Coringa é o filme que dá calafrios sem precisar de sustos ou ...

Ainda em nossa cinequarentena, acabamos de rever o Coringa, a que em tempos tão recentes e tão remotos assistimos na sala de cinema. Não sou lá muito adepta de ficar revendo filmes, especialmente uns tão de ontem, porque, a não ser que haja algo muito enigmático a não ser entendido de primeira, em geral eu "esgoto" a obra logo após conhecê-la: ou não me interesso o suficiente para ler mais nada além de uma crítica – e, em consequência, não me interesso o suficiente para revisitar a produção anytime soon –, ou leio tanta coisa, busco tanta curiosidade, vejo tanto GIF, dou tanto repeat interno nas cenas, que certas falas chegam a estar quase decoradas e reassistir se torna redundante. Sim, eu fiz essa "ordenha" depois de ver o Coringa pela primeira vez, imergi em análises e comentários, praticamente memorizei trechos, mas mesmo assim fiz questão de prestigiar o lindo logo em sua estreia (não paga) na TV, na grade da HBO.

Não que o roteiro seja impecável; loooonge disso. Restam dúvidas razoáveis sobre o que realmente aconteceu ali – dúvidas que eu não tinha pretensão de ver sanadas neste segundo encontro. Compareci ao encontro, porém, por puríssima fascinação pelo personagem (por ESTA versão do personagem) e pela detalhada, excruciante construção feita por Joaquin Phoenix, um dos merecedores de Oscar mais indiscutíveis. Jamais fui fã do Palhaço do Crime, não pisei no cinema movida por nenhumíssima atração pessoal pelo vilão, cujas encarnações anteriores desprezo – apesar de aplaudir de pé, claro, as atuações de Jack Nicholson e Heath Ledger, em especial a deste último –, mas fui incapaz de resistir à dor que transborda de Arthur Fleck desde a primeira cena. Enquanto os Coringas antecessores são freaks psicopatas sem uma sólida história de origem e sem motivações palpáveis, o atual tem (não direi motivações, mas) motivos bastantes para gerar uma dezena de hóspedes do Sanatório Arkham. É isso que dói no peito, na garganta, no fígado, e ao mesmo tempo é isso que me seduz tão irremissivelmente para o filme, por mais que o roteiro seja falho e o aproveitamento da "mensagem", controverso: é ter sede de amparar o protagonista nos braços, dar-lhe o mínimo de compreensão, de apoio, de escuta, de ternura; é ter por ele não pena, que costuma ser permissiva e paralisante, mas uma dolorosa empatia; é saber que pouquinha coisa – um tantito só de olhar, carinho, abraço ao longo dos anos, mais uma dose básica de lealdade – talvez tivesse evitado toda a desgraça, talvez tivesse interrompido crucialmente o processo. 

Exatamente o processo estampado na tela é o que dá fogo e alma à obra, que NÃO se trata de uma costura bem-sucedida de enredo, e sim de um estudo de personagem. O filme é inteiramente Phoenix e sua precisão cirúrgica ao representar um trajeto de dissociação da personalidade: a linguagem corporal curvada e exausta de Arthur, que se contrapõe à atitude cada vez mais aberta e desafiadora de seu alter ego; a oscilação constante na lateralidade (Arthur é destro, o Coringa é canhoto); a gangorra minuciosa entre a doçura no olhar do "mocinho" e o crescente deboche e niilismo no do vilão – sem que este, embora muito mais seguro e badass, deixe de parecer ainda mais triste que o primeiro. Muito se teorizou a respeito de a produção fazer uma suposta glorificação do incel, mas não é fato: por mais que esses seres ressentidos da vida real possam vir a espelhar-se na espécie de violência adolescente do Coringa (também se espelham nos Cavaleiros Templários e outras criaturas de armadura, e nem por isso, né?...), o protagonista de modo algum culpabiliza mulheres em geral; quase todas as suas vítimas são homens – ninguém relacionado a pendências sexuais –, e sua raiva não é nada inexplicável nem delirante, ainda que ele mesmo o seja. O roteiro dá pano para mangas e smokings inteiros, porém o foco é simples: tem-se aqui, fundamentalmente, uma história de abandono e tortura em vários níveis, e a história de seus efeitos sobre corações que não foram ensinados a contar com quaisquer recursos.

Quase um ano se passou desde que, pela primeira vez, vi Arthur Fleck tentando sorrir diante do espelho, e fico feliz que a cena continue doendo – tanto quanto o replicar da cena com todos os coringas que se sentem cartas fora do baralho. Quanto menos nos doem as impossibilidades de sorriso no outro, maior a chance de fazermos parte do elenco que produziu a tragédia.

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