domingo, 5 de julho de 2020

Conquistar o medo

File:Fearless Girl Touro.jpg - Wikimedia Commons

Realmente não sei como reagir às conclusões de um estudo publicado por psicólogos da Universidade de Chicago na segunda-feira passada, 29 de junho. Segundo a pesquisa, fãs de filmes de terror e "pessoas classificadas como 'curiosamente mórbidas' [ou seria 'morbidamente curiosas'?] sobre assuntos desagradáveis" estavam mais preparados para lidar com a pandemia, foram menos afetados psicologicamente por seus efeitos e se mantiveram mais otimistas – ora vejam só. Um dos psicólogos envolvidos no trabalho, Coltan Scrivner, sugeriu em entrevista que o terror talvez ajude numa espécie de regulação emocional, e se citou como exemplo, afirmando que assistir a obras do gênero foi algo que lhe permitiu ter medo e "depois conquistar esse medo".

Estou num mix de me surpreender (porém não muito), achar revelador, interessante, preocupante, fascinante e engraçado. Nunca fui adepta do terror, bem ao contrário: passei infância e adolescência considerando já perturbadores demais os comerciais de A hora do pesadelo, Sexta-feira 13 e semelhantes que invadiam a TV dos anos 80/90; trechos de filmes, desenhos e séries em estilo onírico-surrealista, pinçados aqui e ali, também embrulhavam tudo por dentro. Nem a Thundercats ou Caverna do dragão eu assistia, por motivos de "oh, man, que bichos mais feios e que atmosfera mais angustiante" quando tentei fazê-lo. Ao mesmo tempo, sentia um encantamento aflitivo pelo clipe de "Thriller", que me enchia de medo sem que eu conseguisse despregar os olhos. Mas eu era então miudinha demais, ainda menor do que hoje, e mesmo as mais felizes infâncias são naturalmente aterrorizadas por fantasmas próprios, que são nossas incompreensões gerais do mundo, nossas inaptidões para digerir os meandros humanos aos quais não fomos suficientemente apresentados. Crianças são sensíveis, verdes, confusas, estagiárias, estão estreando – e sequer sabem expressar o que não sabem, nem têm os recursos verbais (já limitados) dos adultos. Os adultos, espera-se, já saíram do casulo nevoento e sacudiram o verdume; pois saí, sacudi; e, embora continue não buscando filmes de terror por preferência espontânea, vejo com toda a tranquilidade um Freddy, um Jigsaw ou uma Samara – por sinal que algumas de minhas produções favoritas, como O orfanato e O labirinto do Fauno, têm um clima de pesadelo melancólico. 

Conquistei o medo? Talvez sim, parece que sim, não sei. Deve haver aí algum indício, somado ao fato de que tenho efetivamente (shame, shame) uma curiosidade morbidinha de acompanhar os programas de psicopata do Investigação Discovery, como já falei. Certamente não é impulso sádico nem masoquista, pelo amor!, mas uma certa paixão de entender do que é capaz a mente humana, esse balaio de Jasons. Coincidência ou não, reconheço com embaraço que estou nesse grupo dos menos afetados psicologicamente pela pandemia. É evidente que o que me garante nessa posição não são os assassinatos do canal 639, e sim a estabilidade material, o conforto doméstico, o sossego de morar com quem é aliado da e na paz; mas haveria algum componente da tal "regulação emocional" somado à operação? Vendo os resultados da pesquisa, escorrego para a crença de que haja – possivelmente porque os que se interessam por histórias de psicopatia (como meros observadores, é óbvio, e dentro de certos limites) podem amar a bondade e a doçura, mas sabem do que as pessoas são em princípio capazes, o que talvez atenue ligeiramente a consternação e o susto. Estou, com frequência, sendo duas por dentro: a que acredita na força do final feliz que vive na maioria e a que já espera a sabotagem de uma minoria sacana, indiferente, ególatra, desregulada ou simplesmente má. Creio por natureza no melhor, mas constantes narrativas me educaram para a realidade de que o pior também existe; apenas não costuma ter a última palavra antes do the end. 

Conquistar o medo pode não necessariamente depender do gosto pelo terror ficcional, porém exige renúncia à exclusividade de arco-íris e unicórnios. A lógica é quase clara: se nos enclausuramos num universo de Ursinhos Carinhosos, o choque é excessivo quando o mundo real nos atropela a nuvenzinha; mas, se nossa dieta artística e midiática é equilibrada o suficiente para jogar luz em nossos abismos sem nos jogar dentro deles, ficamos já um tantinho workshopados, mais treinados e tranquilos para a hora de esbarrar com os verdadeiros monstros.

Nenhum comentário: