sábado, 4 de julho de 2020

Palavraria

Imagem gratuita: mão, colorido, luz, pele, corpo, laser, escuridão ...

Crônica é um texto delício porque é que nem parque da Disney vazio: você pode brincar no que quiser, tão repetida e loucamente como quiser, sem impaciência nem fila. Um dos espaços escritos (na prosa, ao menos) em que há maior fartura de legos e menos cercadinhos, menos monitores, menos manuais de instrução. A crônica é: me deixa. Me deixa aqui na minha Nárnia verbal, saltitando ou cavalgando em livre escolha, contando um causo da última semana ou as peripécias da bisavó Gertrudes, discutindo o energúmeno que preside os Estados Unidos (quem dera que SÓ os Estados Unidos) ou o último grito fashion de combinar a máscara com a roupa. Acordei na veneta de falar sobre a cor do porcelanato lá de casa, e daí? me deixa. Falo sim e, se cismar, ainda meto um latim no meio, ou uma língua da Terra Média. Acabou-se. Crônica – maravilha! – tem menos regras que o Clube da Luta, já que nada nos impede de falar sobre a crônica. 

Nem todas são palavrório, mas todas podem ser palavraria, uma sapataria gratuita de palavras: a gente calça e experimenta quantos termos desejar, da cor que der na telha, mistura pares, mistura saltos, bagunça os modelos, passeia, lasseia e customiza até servir – ou nem servir; o que nos impede de desfilar uma palavra que está dentro da margem de erro, duas sílabas para mais ou para menos? Não tem banca para examinar, não tem ABNT de butuca pra botar forma no que é puro amor e sacanagem linguística, não tem nem o compromisso firmado de interromper a trip e seguir com a história. História? Que que eu tava dizendo mesmo? Ah, sim, era sobre aquele dia na infância em que fui visitado pela fada do dente; mas esquece, não era nada não, vocês já repararam como em português a gente tem riqueza de construir sintagmas disparatados e lindos? "Ideia alagartada", "discordância preferida", "lampejo de parede jubilosa", "finura vibrante", you name it. Bem lembradamente, aliás: essas outras línguas vivas e mortas e inventadas entram também no baile; em se plantando, na crônica, dar-se-á nela tudo, por bem dos mimos que tem.

Más e boas línguas (vivas, no caso) dirão que é por isso que me encosto na crônica em preguiçoso serão. Estão certas. Se é sesta e festa, se é ensaio sem jogo, se é menos limitada que amarelinha por (em tese) não ter casa proibida de pisar, se é molecagem que corre descalça atrás das asas ligeiras das borboletas azuis, por que pitombas vou me enfiar em outra vibe literária – ou pior, imperdoavelmente: NÃO literária?? Nada, nada. Eu bem queria ter a paixão dos estudiosos que se emaranham num assunto e viram bibliografias respirantes, eu bem queria ter a veia genial do enredo que tece, tece, tece e desfia, desfia, desfia a seu bel-prazer; mas nasci desfocada e passarinha, rebelde às bordas e inadequada para trilhas. O mundo já dói tão compulsoriamente! Por que vou me mentir na maratona se só me sei feliz na esquivança, na clareira que não tem no mapa, no atalho com mais cheiro de flor e terra bruta?

Prazer: deslocada crônica. Me deixa.

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