domingo, 19 de julho de 2020

Treino é treino (?)

Foto profissional gratuita de academia de ginástica, ação, aço

Assistindo a um episódio da série Diário de um confinado, constatei que não é só comigo: o protagonista Murilo, vivido por Bruno Mazzeo, também tem ranço do verbo treinar aplicado ao ato de fazer ginástica – ou "malhar", como observa o personagem, que pertence a uma geração adjacente à minha (e o batismo da novelinha Malhação, cujas primeiras temporadas nos 1990 foram ambientadas em academia, ainda está por aí de testemunho histórico). Não é que eu aprecie particularmente o "malhar", mas me soa muito mais coerente e menos antipático, em sua condição de gíria e sua parecença com a bate-estacação de sentar o malho numa chapa metálica, do que a pressuposição embutida no "treinar" de que se está ensaiando para alguma coisa. Malhar envolve esforço e repetição, um agir mecânico para moldar algo – o corpo, no caso; treinar, por sua vez, ruma a uma apresentação ainda maior no depois, uma apresentação a ser carimbada, avaliada, rotulada por júri ou placar.

Não sou purista de língua, juro, juro juradinho, vocês sabem; sou bem abusada inclusive, misturo e mexo segundo o que dá na traquitana, não dou nenhum exemplo de respeito sublime. Mas me reservo o direito, como qualquer falante/ usuário nativo, de me irritar com modas aparecidas sabe-se lá de qual Hades da inconsistência, manias que simplesmente não fazem sentido. É isto o que sobretudo me azucrina, junto com a repetição desordenada: não fazer sentido. Ora, se eu e vocês somos reles mortais que não treinamos para um jogo profissional, que não treinamos para as Olimpíadas, que não treinamos para figuração na abertura das Olimpíadas, que não treinamos para a São Silvestre, que não treinamos para o próximo GP, que não treinamos para um recital de música; se eu e vocês somos criaturas sem agenda cheia que não treinamos um discurso, nem um papel no teatro, nem uma declaração de amor, nem uma declamação de poema, nem uma escala no piano, nem respostas de entrevista, nem pronúncias de língua estrangeira – para o que CACETES treinamos ao fazer vinte minutos de bicicleta ergométrica, dez flexões ou duas séries de abdominais?? Quando e por que o treino perdeu seu status de preparação para uma avaliação ou embate, de aperfeiçoamento de habilidades para um qualquer evento?

Claro, as palavras se expandem, os sentidos engordam, as gírias nascem e eventualmente fixam residência (amo-as, adoro-as, nada tenho contra elas), o idioma é vivo e inquieto, rico e buliçoso. Não me parece, porém, que o caso do treino seja exatamente espontâneo – ao contrário, até: parece-me uma tentativa cafoníssima de endurecer, higienizar e "profissionalizar" o exercício físico que batemos no liquidificador com a rotina, meio aos trancos, sem a roupa mais "adequada" ou o ambiente "ideal". Não que esse exercício não deva ter orientação profissional, mas não é feito por profissionais, e me soa honestamente pretensioso que se busque projetar no dia a dia comum o peso e o impacto de dia a dias bem específicos. A diferença é crucialmente de objetivo; é aquela que mora entre o cumprir cotidiano de uma tarefa de saúde e o alimentar de ambições competitivas. Pronto, tudo acaba dando na ideia de competição e é provavelmente isso que me exaspera. Isso e aquele nojento falsear da realidade que vive na linguagem empresarial – same energy. Como se estivesse implícito no treino a necessidade de sermos "produtivos", focados numa linha de chegada, num case, num adversário, quando em verdade se deveria meramente tratar de equilíbrio, desestresse e manutenção. 

Vocês treinadores, treinistas, treineiros, treinantes, treinões, trainees que me desculpem, mas fico aqui com a minha humilde atividadezinha física mesmo. Sem nenhuma meta importante a não ser, talvez, adiar tanto quanto for possível a final.

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