domingo, 26 de julho de 2020

Vontade cafeinada

Página 59 | Fotos flores multicolores libres de regalías | Pxfuel

Ser inspirado por algo é um bicho doido: não basta ser coisa de que se goste, embora esteja naturalmente atrelado. É preciso bater o olho, o ouvido, o olfato e sentir qualquer vontade esvoaçante e nova, uma crença interessante em meios e finais felizes, uma semente de catapulta sendo aprofundada no chão. Não é tão fácil, tanto mais que absolutamente espontâneo: pode-se ler uma genialidade inteira sem ter cócegas de motivação, apenas uma admiração intelectual, analítica, reflexiva, reverente, mas sem faísca. Reconhecer a perfeição é sobretudo cerebral; inspirar-se é maré de alma, uma hipnose, um enamoramento. Inspirar-se é de algum jeito, por causa de algum elemento, apaixonar-se pelo futuro. 

São fatores vários, quase randômicos: o contato se faz e uma lampadazinha acende. Há certas estampas, por exemplo – normalmente coloridas, mas de resto feitas de traços aleatórios; floridas ou listradas, temáticas ou genéricas, folk ou pop, românticas ou roqueiras –, que caem sob os olhos e badalam os sinos, just like that. Há blusas e saias que me põem mais criativa sem razão aparente; não são as mais caras (aliás, quais das minhas são caras?), não são especificamente as mais bonitas, só trazem alguma combinação específica de tons, algum toque artesanal, algum desenho de libélula e voilà, mistura-se uma cafeína nas ideias e ações. Há paisagens que deixam os neurônios salivando: não praias, cuja beleza demasiado solar me fala pouco ao apetite, mas imagens com cheiro e som de verde, verde sobre as pedras, verde abraçando ruínas, pedras abraçando flores, flores abraçando janelas, musgo, limo, mistérios, árvores choronas, florestas outonais. Paisagens com promessa de história medieval, com jeito úmido de bosque, com trepadeira grená se entrelaçando em balcões de outros séculos. 

Me inspiram também fatalmente: poemas de Cecília e de Manoel de Barros. Paredes de tijolos. Lojas de antiguidades. Brechós. Rendas. Colares. Sebos. Caleidoscópios. Violinos. Crônicas da Martha. Novelas da Lícia Manzo. Telas do Monet. Móveis de madeira pintados de amarelo, vermelho, azul. Dentes-de-leão. Marisa Monte. Amélie Poulain. Bebidas cremosas. Biscoitos amanteigados. Shampoos do Boticário. Grafites de rua. Pães fresquentinhos. Pães na chapa. Envelopes coloridos. Azulejos portugueses. Tecidos indianos. Os terracinhos róseo-morenos da Itália. As plaquinhas de rua de Paris. Os pintores de rua de Paris. As tudices de Paris. O cheiro de entrar no Starbucks. A música de começar Cold case. A cor turquesa. O perfume dos livros vovôs. Os cantinhos de aconchego e leitura. As bibliotecas. As delicatessens. Boa parte do que, no planeta, é ensolarado para a contemplação e confortavelmente sombreado para a permanência; boa parte do que tem alma sutil, modernidade com ascendente em fofura, uma pegada entre vinho e café – meio antiquário, meio papelaria. Coisas, gentes, lugares que me atiçam uma estranha fome de fabricação.

O que há no que inspira? A natureza do que há no que apaixona; um segredo com genoma personalizado, uma chave moldada tão parecidamente com encomenda. Mas se o sapatinho serve e não machuca, pronto, bora lá, que tem muito baile pela frente – e o que traz vontade e saúde para a dança é magia bem-vinda.

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