sexta-feira, 31 de julho de 2020

Substantivários

Wall Ao Vivo Planta - Foto gratuita no Pixabay

Adorei milhões a brincadeira substantiva feita por John Koenig, de que ontem falei – e adorei tão muito que me vi tentada a também elaborar meus nomes de tristezas (e demais emoções) obscuras, mesmo correndo o risco de batizar o que alguém já haverá talvez batizado. Se eu por acaso incorrer nessa apropriação involuntária de terreno verbalmente d(en)ominado, perdoem, e considerem seja apenas a versão em outro idioma de um qualquer sentimento em comum.

Por exemplo: proponho musicaminhância para nomear aquela espécie sonora de bovarismo que todos os amantes de cinema e televisão carregamos. Toooodos. Ou não é verdade que, desde que começamos a ser expostos a cenas de ficção embaladas por determinada trilha, passamos a projetar naturalmente nossas cenas da vida real como takes de dramaturgia, cada vez que a canção ideal toca nos fones, no rádio do carro, no provador da loja? Confessem. Ao som do tema de Superman, somos mais corajosos e andamos mais rápido pela rua; observamos o voo das aves de outro jeitinho se na cabeça estão os acordes de Jurassic Park; a chuva fininha que vemos da janela fica muito mais nevada e natalina se lembramos ou escutamos a melancolia sonora de Edward Mãos de Tesoura; todos parecem mais beijáveis e enternecedores caso toque Marisa Monte, Ed Sheeran, Colbie Caillat. É muito humano, é muito nosso que nos tornemos etéreos e cinematográficos ao aperto de um play – e, na maior parte das vezes, que bom que assim é; alguma saudável embriaguez precisa arrancar a rotina da excessiva denotação, mudar a rotação, ajustar a rota, enfunar as velas. Abrir janelas.

Tem também (ou poderia ter) a obscura tristeza da platonicria, da qual aliás sofro. Que vem a ser? A extrema ternura pelas coisas viventes e fofinhas – plantinhas floridas, bichinhos adoráveis, bebês bochechudos –, que por um lado desperta o intenso desejo de tê-las crescendo e enfofando por perto, mas por outro não deixa a gente esquecer que essas coisinhas encantadoras dão trabalho e despesa. Eis-me aqui, que não minto: metade de mim gostaria de ter a varanda coberta de flores, buganvílias enroscadas nas grades, um cenário de balcão de Julieta; metade de mim amaria ter, ao alcance permanente das mãos, um porquinho-da-índia altamente amassável, que tudo mastigasse com seus dentitos vorazes; metade mim adoraria ter... não, crianças não, filhotes humanos já são uma excentricidade até para a vontade fantasiosa. Mas enfim. O caso é que a outra metade, poderosissimamente preguiçosa e inimiga de trazer QUALQUER complicação para dentro de casa, tem a palavra final, e se recusa com assustadora veemência a gastar um real que seja com ração, ou a passar dois segundos que sejam limpando pegadinhas, consertando móveis roidinhos. Realmente não é para mim nada que tome tempo ou grana além do que já está no pacote básico dos cuidados com a casa, a família (a família que nasceu sem que a paríssemos, evidentemente) e a gente mesma; tudo o mais continua, por aqui, só platonicriado e representado por bonequitos e vídeos fofos. 

Há de haver outros substantivários blowing in the wind, vagando na nuvem dourada e gorda de possibilidades linguísticas; mas por enquanto foram esses tais que cá aportaram neste dia de chuva, neste dia mais preguicento que os platonicriadores convictos. Aceito ideias, garrei gosto na coisa. Se nomes de cores, flores, frutas, bichos nunca me pareceram suficientes pra dar conta dessa estufa de sustos que é a Terra, muito mais insaciável eu sou de palavras para nossas entrelinhas, nossos moods, paradoxos, doideiras, cismas, esquisitices. Sempre fui do partido dos vegetaizinhos que brotam nas frestas, nos rejuntes: os verbetes já disponíveis não me contemplam. Não me bastam. Sou dos que vão chatear até aproveitarem o sumo e a essência da coluna do meio.

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