quinta-feira, 23 de julho de 2020

Venenos

Banco de imagens : campo, Chão, árido, flor, estéril, terra, seco ...

Definitivamente não sou fã de divulgar por aqui as notícias ruins que nos assaltam; prefiro os vaga-lumes metidos entre as rotinices que, para tantos, já têm sido tão nevoentas neste 2020 indescritível. Prefiro a multiplicação dos poemas, das pequenas fofuras que colorem o planeta, das artes, doçuras, curiosidades. Mas alguns noticiários nos socam tão na cara, nos levam de tal maneira o peito a nocaute, que não resta quase espaço para fugir do assunto, e a gente fica lamentavelmente forçado a repisá-lo no formato verbal depois de já tê-lo sentido doído e chorado. 

A monstruosidade da vez é: em Itapevi (SP), dois adultos em situação de rua (e um cão possivelmente relacionado a eles) morreram após ingerirem alimentos contaminados que um homem não identificado lhes ofereceu. Duas meninas de 11 e 17 anos – cujo pai passava pelo local onde a comida estava sendo distribuída, aceitou-a e levou-a para casa – estão internadas por também terem sido vítimas de provável envenenamento. E mesmo eu, que por sobrevivência emocional não duvido da capacidade evolutiva de nossa espécie, me vejo em pouquíssimas condições de defender, no momento, uma humanidade que gera algo tão inominável em tantos âmbitos. 

Se alguém cisma de exterminar animais de rua "incômodos" – cachorros, gatos, pombos ou o que mais a horrorosidade humana conseguir odiar – dando-lhes ração envenenada, é um ato que já automaticamente nos rasga por dentro. Se pessoas em situação de rua consomem algum alimento que não lhes foi dado estragado, mas que eventualmente foi encontrado assim, e por causa disso passam mal, é um fato que no mínimo já nos revira as vísceras. Combinar essas duas aberrações do mundo numa terceira megablasteraberração, no entanto, é de arrancar o coração com a mão, feito aquele sacrifício bizarro do segundo Indiana Jones – e o combinado dessas duas aberrações, contra tudo que nos define como humanos, é precisamente o que temos: pessoas pobres, desamparadas, vulneráveis, DELIBERADAMENTE envenenadas por alguém que as considera PRAGAS a serem combatidas. Pessoas que o sistema não se contenta em abandonar à margem, não está satisfeito em largar ao sabor do acaso; não! é preciso mais! é preciso manipular justamente seu ponto de maior vulnerabilidade – a fome –, atacar um segundo ponto de maior vulnerabilidade – a esperança – e executar essa sentença do inferno, essa sentença de exclusão realmente irreversível e absoluta, da maneira mais covarde, mais inqualificável, mais impossível de imaginar sem desespero e vômito.

Não estou apenas chocada, não estou apenas revoltada, estou dilacerada, destruída. Uma coisa é saber racionalmente que há seres isentos de empatia, é imaginá-los frios ante a dor alheia, e outra é VER (porque pensar uma notícia dessas é automaticamente vê-la) um so-called homem despejar toda a intenção de provocar dor no mesmo prato feito para chamar vida. Quanto horror por si mesmo é necessário para que alguém desconte em seus iguais todo o autodesprezo que sequer consegue encarar? Quanto fracasso na alma carrega alguém que, inapto para toda realização e toda luta, decide eliminar suas co-vítimas em vez de se reconhecer como fruto e engrenagem podre do mesmo sistema que as vitima? Quantos venenos exterior e interiormente fabricados tomam as entranhas de alguém antes que este resolva derramar em outrem sua repugnância de si? Quanta deserança de amor, quanta pobreza de vivência familiar, quanta ignorância de afeto próprio e compartilhado, quanta nulidade de educação, quanta inexistência de talento, quanto vazio de autoestima cabem em alguém que concebe essa ideia de ser humano – essa ideia de ser descartável, daninho, irrelevante, malquerido, inútil?...

Para continuar já me falta alento; e, apesar desses fossos dementadores que vez em quando se abrem na rotina, seguimos; sigamos. Que o ódio nos aflija, nos agrida, nos traspasse, mas nunca nos domine: em todas as instâncias ele nada pode, se a última palavra somos nós.

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