quarta-feira, 15 de julho de 2020

Sem volta

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Foi extremamente dilacerante e linda a participação do padre Júlio Lancellotti no Papo de segunda de anteontem (por sinal, uma junção de potências: tanto o programa se mostra, semana após semana, como uma das mais relevantes produções atuais, como o próprio convidado prova diariamente ser um dos maiores e mais importantes brasileiros vivos). Entre os vários momentos tocantes do primeiro bloco, que visivelmente deixaram cada um dos participantes de coração embargado, destaco o poderoso relato do padre a respeito das consequências de seu trabalho junto às pessoas em situação de rua. Segundo ele, por se colocar incondicionalmente em defesa dos desprotegidos, muitas vezes foi xingado e criticado, teve de peitar a guarda truculenta, chegou a tomar soco no estômago e a receber ameaças de morte – mas nunca pensou em retroceder no projeto, até porque não reconheceria mais a si mesmo se o fizesse. O que mais me bateu na fala foi a forma como o padre Júlio resumiu candidamente a questão (sem aspas, já que o parafraseio): uma vez nesse tipo de caminho, não há como voltar atrás. 

Pronto. É apenas isso. Chega um ponto em que – não direi que não existe escolha – a escolha se faz o mais parecidamente possível com um voo de ave ou uma corrida de puma: programada não é, mas tanto a vontade se alia à natureza, tanto o decidido parece compulsório, que se torna inviável separar a ação da respiração, a capa da pele, o propósito do instinto. Desde que a consciência nauseante dos esquemas do mundo se nos desnuda, nos invade, nos dá na cara, qualquer soco literal no estômago se revela preferível em comparação com o horror de reforçar esses esquemas. É o tomar da pílula vermelha, o acordar após a saída da Matrix, quando a realidade virtualmente arrumadinha é varrida de sobre a estrutura caótica que existe na prática. Não é questão de pessimismo, ao contrário: o pessimismo se opõe à luta, é desistente e entreguista, porque why bother? Para se ser minimamente operacional, no entanto, deve-se conhecer a ficha corrida do inimigo e olhá-lo na fuça, sem "manto diáfano da fantasia" sobre a "nudez forte da verdade", como diria Eça; deve-se encarar nosso esqueleto social capitalista sem ilusões de mudança rápida, sem expectativa de relâmpagos de iluminação espiritual nas altas esferas, mas com esperança suficiente, por isso mesmo, para todo dia arregaçar as mangas um bocadinho, infernizando o sistema infernal até que ele vá cedendo pelas beiradas.

Depois que se começa a acordar cada dia mais arregalado, mais ciente do esmigalhamento de uns pelo luxo de outros, pode haver resistência ao mergulho, pode haver medo, contra a própria consciência pode haver revolta, mas não há volta; defender os moldes da Matrix vira autotraição e fingimento. A razão grita, escoiceia, se impõe, e caso não se imponha não tem paz: a razão não é bem-sucedida em negar-se, costuma acabar suspirando e abraçando a missão cuja ausência a inutiliza. Obviamente não imagino que cada um de nós atinja o desprendimento e a grandeza de uma Irmã Dulce, de um padre Júlio, porém acho razoável esperar que nenhum de nós retorne a seu formato de alienação original. Acho esperável que não recuemos um milímetro, que nunca mais deixemos passar uma piadinha machista ou racista sem confrontar seu emissor, que de jeito nenhum compactuemos com o ataque às universidades públicas, que sob hipótese alguma nos calemos ante o achatamento dos direitos trabalhistas, que não permitamos agressões homofóbicas nem sobre nosso cadáver, que não abandonemos as manifestações (pós-pandemicamente), que não fraquejemos na defesa da arte, que não desistamos de incutir lucidez em adultos e crianças, que não nos omitamos politicamente, que não nos calemos, que não nos cansemos, que sejamos chatos, repetitivos, tinhosos, insuportáveis em tudo que vale a pena – como, aliás, tendem a ser os personagens que os alienados também admiram no cinema, mas pelos quais se sentem ameaçados na vida real. Estejamos em qualquer ponto entre as pequenas lutas às vezes tácitas, porém irredutíveis (na família, no trabalho, na rede social), e as grandes entregas como a do padre Júlio; o essencial é que permaneçamos – ou avancemos. Retroceder não é uma opção.

Naqueles em que os olhos se desvelam, a mente enxerga e ainda assim cabeça e mãos permanecem paradas e baixas, o inferno não são exatamente os outros.

2 comentários:

Celso Trancoso Clemente disse...

Ufa! Que bela és tu! E tão necessária. Hoje achei uma fala bela e disse a tua amiga que lembrei de ti (e vou escrever lá na postagem sobre Leonardo), e acabei achando esta, mais bela e necessária ainda.
Vida longa à resistência, ao direito de nunca desistir!
Hoje no Papo das 9, o André Trigueiro falou desta participação do Padre Júlio (eu vou lá assistir).
E depois, respondendo a uma pessoa, ele disse e anotei (nunca ouço André sem meu caderninho): "O Desânimo não é um bom pretexto para deixa de fazer o que quer que seja".
[Depois vá lá no teu escrito sobre Leonardo, que eu achei uma fruta gostosa para te dar].

Unknown disse...

Sim, vida longa à resistência, querido Celso! Amei a fala do Trigueiro, a quem sempre admirei muito. Como brilhantemente também disse o Antônio Prata, naquele texto que o Fábio compartilhou (e eu compartilhei dele), tudo que temos visto no bolsonarismo é um verdadeiro gozo da desistência, e não podemos entrar nessa onda jamais. Obrigadíssima pelo carinho!! 😍😍😘