quinta-feira, 2 de julho de 2020

Estamos vendo alguma coisa acontecer

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Falar da Disney é um mil-folhas verbal: camadas sobre camadas sobre camadas de questões puramente afetivas AND consciência de sua agressividade capitalista (se deixar, a bonitinha compra o mundo) AND fascínio pelas obras e parques e personagens AND reservas a respeito de seu criador manipulador e genial – tudo junto, embolado, com orelhinhas redondas na ponta. Eu, pessoalmente, amo há décadas o universo, me formei gente embalada nas músicas e desenhos; mas é de uma ultramegablastergigante empresarial que estamos falando, e não sou tonta nem tenho tendências de Mickey feiticeiro para ficar passando uma centena de panos, vassouras, esfregões. A Disney é maravilhosa e é um trator corporativo. É de um apuro estético inimaginável e de uma vocação preocupante para o monopólio. Um problema, enfim, para o psicanalista que ainda não tenho. Mas numa coisa a gente concorda, já dizia o velho comercial: a empresa de Mr. Mouse tem estado cada vez mais atenta ao sopro dos tempos, aprende velozmente a reconfigurar-se (e até dar risadas eventuais de si mesma, como em WiFi Ralph, Frozen, Encantada), acompanha criativamente o mundo. De Auroras e Brancas de Neve passivas – salvas por beijos masculinos não consentidos – a Moanas, Meridas, Elsas e Vanellopes solteiríssimas e 100% donas de si, a evolução é incontestável; ventos de feminismo e sororidade invadem lindamente as produções, há crescente valorização da diversidade étnica (a escolha de uma atriz negra para protagonizar A pequena sereia foi bola dentríssimo) e uma já tradicional cultura gay-friendly nos parques. Está looooonge do perfeito, mas vai caminhando, e não resisto a querer saber how far it goes.

O mais recente aceno à evolução foi a declaração de que a Splash Mountain, um dos brinquedos mais superclássicos nos complexos da Califórnia e da Flórida, vai ser todinhamente remodelada: saem os personagens do racistérrimo A canção do Sul, filme de 1946 que mostra os tempos de escravidão nos EUA de maneira romantizada, e entra a galera de A princesa e o sapo, primeiro desenho do estúdio protagonizado por uma jovem negra. Segundo a empresa, a mudança já era prevista desde o ano passado – e acredito que o fosse realmente, uma vez que a produção de 46 sempre recebeu duras e justas críticas, não ganhou VHS nem entrou ou entrará no catálogo do streaming; era há tempos o filho renegado e constrangedor da companhia. Ainda que a cúpula disneyana já não houvesse encaminhado o projeto, porém, deste ano ele não poderia passar sob nenhuma hipótese: não existia POSSIBILIDADE de uma aberração como A canção do Sul continuar sendo remotamente lembrada num mundo de primavera antirracista, um mundo que se dispõe com força a encarar e limpar feridas escancaradas pelo assassinato de George Floyd. 

É fato que, na Splash Mountain, não se encontravam referências diretas aos personagens humanos do longa maldito, aqueles que celebravam o período da escravidão de um jeito imperdoável; sobraram ali apenas os bichinhos animados e a musiquinha (chiclete e adorável, admito) "Zip-a-dee-doo-dah". A mera alusão à obra infame, entretanto, era já ofensiva, como aliás o são todas as homenagens aos propagadores de qualquer horror. Naturalmente a Disney – por mais antenada que se mostre – não se mexeu sozinha na mudança, foi pressionada por fãs e petição online, mas enfim ouviu e acatou a sugestão de trocar (a memória da representação de) afro-americanos estereotipados, estocolmizados, pela imagem da mulher negra empoderada, focada e decidida. É um pequeno passo para o Mickey, um big splash para a sociedade, já que o que nos constrói vem necessariamente do projetado, do amado, do vivido, do visto, do simbólico: mergulhar – literalmente – no mundo vibrante de Tiana, participar de sua realidade como heroína, é um aconchego de representatividade nas crianças negras, um convite irresistível de empatia, um tipo de materialização emocional do universo igualitário. E uma sinalização poderosíssima: afinal, Tiana vai ser um dos principais corações dos parques que são, por sua vez, os corações de seus complexos. Deixa a gente com um qualquer acalento no peito, como um abraço quentinho. 

Certo, ainda é pouco em termos gerais, mas seguimos, seguimos; isso é viver, é aprender. O que não pode nunca! é pessoa física ou jurídica fechar as orelhinhas, fingir que não viu lá na curva o que é que vem e fugir da construção deste (irreversível) whole new world.

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