segunda-feira, 20 de julho de 2020

Iluminados

Nos bastidores do horror de 'O iluminado' - Jornal O Globo

De vez em quando aproveitamos o isolamento para, como diz o Fábio, embarcar na cinequarentena. Nossa mais recente sessão foi com O iluminado, que imperdoavelmente ainda não havíamos visto e que enfim pudemos constatar por que é um dos terrores mais icônicos da telona. A trilha agonienta, os ambientes sufocantes apesar de enormes, os carpetes e papéis de parede coloridões e sinistros, as garotinhas de mãos dadas e olhos estoicos, o "redrum, redrum, redrum" repetido com voz de robô empenado, o velocípede em plano-sequência, a banheira, o banheiro, a neve, o labirinto, o taco, o machado – poucas produções têm maior quantidade de pesadelo por metro kúbricko. Não que nos tenha causado pesadelo (afinal moramos no Brasil, quem é o hotel Overlook na fila do pão?), mas uma dorzinha de cabeça sempre vem quando o final só vai amarrar as pontas a posteriori e deixa a gente com cara de tacho. 

O iluminado se ilumina sim, às vezes com holofote nas obviedades, porém em grande parte com faroizinhos espalhados – metáforas, metonímias salpicadas no recinto. Desde o "só trabalho e nenhuma diversão fazem Jack um bobão", passando pela bolinha jogada na parede e recuperada (jogada na parede e recuperada, jogada na parede e recuperada) até o perturbador zoom de encerramento, o que se sublinha e ressublinha é a força com que alguns seres se deixam condenar à repetição, tendo sido, não raramente, os primeiros a duvidar de sua própria entrega. Independentemente da presença de fantasminhas de vestidos gêmeos, muitos de nós já carregamos por todo lado nossas fantasmagorias gêmeas, multiplicadas, persistentes como um vício d'alma. Temos, com certa constância, uns salões aparentemente vazios nos quais basta um descuido e os fantasmas se divertem: medos que esnobamos mas não desinfetamos, e num estresse imprevisto voltam a infeccionar; traumas que não investigamos a fundo – por ignorantes ou autoconfiantes – e que eclodem no descontrole de algum aspecto da vida; mágoas de nós ou de outrem que mantemos soterradas, mas enraizadas ainda, e ao roçar de um botão explodem cobrando juros, cuspindo vespas, machadando portas. Não basta contarmos com espaços amplos se estivermos enjaulados em nosso potencial de eterno retorno. 

Podemos andar por aí exibindo um espírito contemporâneo e, numa falha de vigilância, tropeçarmos num preconceito não devidamente extirpado que frequenta na surdina nossos corredores. Podemos manter relações pacíficas que são, em verdade, vulcões vestidos de gelo, só esperando um isso para que Pompeia seja literalmente lavada do mapa. Podemos ter um amor indiscutível aos filhos e, por isso, negar a todo custo a existência de ressentimentos – que, não enfrentados com autoclareza, tendem a embalofar até ser impossível impedir que escapem pelos poros. Podemos jurar que sim, está tudo bem no emprego, no estudo, no casamento, na amizade, na vizinhança, na família, e ainda assim estarmos simplesmente overlookando (o nome do hotel assombrado do filme significa "negligenciar", "deixar passar", acreditam?) o que deveria em nós ser exumado e encarado com menos desatenção, conduzido com mais cabeça e menos barriga. Precisamos limpar e conservar operacionais e aquecidas nossas áreas visíveis, sociais, expostas, mas sem achar que todos os quartos se manterão saudáveis se trancados eternamente. Volta e meia a meditação, a leitura, a religião, a arte, a análise, a psicologia e outras chaves possíveis devem abri-los, examiná-los com cuidado, desembolorá-los, dedetizá-los, tratar na nascente a infestação. Ao menos por nós, nossos meandros precisam ser vistos. Observados. Acompanhados. Iluminados. 

Ou então não teremos, com relação a velhos pesadelos, uma digna festa de independência e um verdadeiro the end.

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