segunda-feira, 31 de maio de 2021

Exército fantasma


Saber que hoje o pintor e escultor norte-americano Ellsworth Kelly faria 98 anos me trouxe, em acréscimo, um episódio totalmente FABULOSO de que o artista participou em plena Segunda Guerra. No verão de 1944, desembarcou na França uma tropa dos EUA que ficou conhecida como The Ghost Army, o Exército Fantasma. Eram jovens recrutados não entre os mais fortõezões e os melhores atiradores, e sim entre alunos de faculdades de arte e funcionários de agências publicitárias; afinal, não iam para o campo de batalha abrir fogo contra os alemães – iam, deliciosamente, ENGANAR os alemães. Os cerca de 1.100 convocados executaram mais de 20 missões (nada seguras nem tranquilas, apesar do ponto de partida quase lúdico) na França, Bélgica, Luxemburgo e Alemanha, e usaram os recursos mais maravilhosos para engabelar os hitleretes: tanques de borracha inflável, efeitos sonoros, transmissões de rádio fake, voltas e mais voltas com homens em caminhões – a fim de parecer que uma verdadeira cabeçada de soldados estava chegando –, visitas a cafés franceses para cultivar fofocas adequadas entre os espiões que poderiam farejar o recinto. Literalmente um espetáculo (nenhuma surpresa quanto a isso, aliás; sabemos bem quão especialistas nossos irmãos do Norte são em soft power, razzle-dazzle, jogo de cena e fogos de artifício. Antes assim. Que feliz o mundo, se todas as armas americanas tivessem ever sido cenográficas!). A ilustração que pousei acima e que trouxe do Opera Mundi, onde também bebi a história fascinante do Exército Fantasma, é uma pintura do soldado Arthur Shilstone que retrata um dos momentos mais impagáveis dessa guerra artística: o espanto dos franceses desavisados diante de quatro jovens carregando um tanque brontossáurico, porém levinho. Certamente encantado de tirar uma com a cara de seus aliados na guerra, mas rivais culturais, um dos moços ianques só lhes explicou calmamente que "os americanos são muito fortes". Kiss on the shoulder.

Impossível não ficar fissurado nesse plot fantástico – que tinha de virar e virou documentário em 2013, produzido e dirigido por Rick Beyer –, até porque poucas coisas são mais divertidas do que ver nazistas sendo feitos de idiotas. E poucas coisas são mais reconfortantes do que conceber uma guerra brigada na inteligência apenas, no cambalacho, na malandragem, sem balas rolando e nada sangrando afora o orgulho (eu sei, eu sei, foi uma parte beeeem diminuta de uma guerra indescritivelmente HORRENDA, com gorda quantidade de horrendice devida aos States, como perfeitamente sabemos; mas me permitam esse desafogo imaginário). Na falta de um mundo em que o diálogo tenha potência para resolver as tretas, não podíamos, pelo menos no período de transição de 14 mil anos entre hoje e um tempo de gente civilizada, combinar umas solucionáticas ao estilo Ghost Army? Sem munições à exceção de malasartices, tudo na maciota, no máximo certas manipulaçõezitas básicas que não machucassem ninguém e, inclusive, se pusessem no caminho de desafetos propensos a esganarem uns aos outros.

Cônsules, embaixadores, diplomatas de países tretosos, por exemplo, que em vez de representarem seus respectivos governos decidissem acabar com a palhaçada e representar a paz: podiam sair todos para um café ou chope muito de boas e acertar, entre si apenas, os detalhes dum esquemão burocrático no qual os chefes de Estado acabassem assinando acordos fofíssimos de harmonia universal sem nem ler o bagulho – pronto, terminou, registra lá essa bagaça no cartório e anuncia pro mundo INTEIRO ao vivo, faz um escarcéu planetário em tempo real, duvido eles desmentirem a notícia e confessarem a própria trapalhada. "Ah, francamente, só daria certo uma vez e olhe lá, SE os governantes pudessem ser tão estúpidos." Claro que os governantes podem ser tão estúpidos, qualquer um pode, cidadãos pê-agá-dados em manipulação fazem funcionar até com um país todão de cabo a rabo – diversas vezes na História, conforme estamos tendo o desgosto de constatar. Enrolões das trevas que continuam circulando pelo mundo talvez fossem detidos por enrolões do bem, e talvez somente por eles: gente que tornasse o sinal de internet do gabinete do ódio inapto para carregar a menor figurinha, gente que amofinasse os grandes do Face e do Twitter até conseguir que TODOS os posts mentirosos e bélicos virassem automaticamente vídeos de catioríneo ou de cacatuas dançantes, gente que botasse em prática os disfarces do Missão: impossível tão perfeitamente que obtivesse a confissão de qualquer criminoso de guerra, gente que ensandecesse os caras de paixão a ponto de alcançar, querendo, até a extinção dos latifúndios no Brasil, assinada de vermelho e exibida nos telões da Times Square.

"Ââââin, credo, mas você mentiria como eles mentem?" O quê – para eles?? ÓBVIO. Ou alguém aí ficou com peninha dos nazistas ludibriados pelos americanos? Não havendo mortes, ferimentos, torturas, humilhações públicas ou algo do gênero, e tendo em vista distribuição de renda e justiça social, SUPERAPOIO uma ótima e velha mistificação, um ilusionismo esperto, um joguinho com perfis psicológicos de deixar o FBI e os algoritmos da rede salivando de inveja. Há que se honrar, muito e muito, a existência de muitos: tudo vale a pena se a vida do pobre ficar mais amena.

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