domingo, 11 de julho de 2021

Nem que pairemos


Site americano me informa: 11 de julho é o Cheer Up The Lonely Day, algo como o "Dia de Alegrar os Que Estão Sozinhos". Não sei se a data é particularidade dos sobrinhos do Sam ou se é coisa global, mas, se a letra A é a verdadeira, acredito esteja na horíssima de socializar isso daí; uma solidão desamparada e compulsória (a única realmente combatível, violentamente distinta da sozinhez escolhida, saudável e não excludente das relações necessárias) corrói fácil o sistema imunológico, desanda a pressão e a glicose, ferra o sono, deprime, estressa, dói nos músculos e articulações, predispõe ao câncer e a dependências químicas, torna o corpo um poço de vulnerabilidade – ou seja: é caso mais do que de psicologia, é caso de saúde pública. Regar uma autoestima abandonada com um minimozinho de amor configura praticamente uma ação de reflorestamento; organismos e histórias que desfolhavam em puro desperdício e ameaçavam tombar de secura voltam à tona, desmergulham de seus limbos e oxigenam novamente o entorno; verdejam, em lugar de pesar e envenenar. Não há como aquele olhar de que ontem mesmo eu falava – o olhar do reconhecimento básico da existência – para "reautorizar" uma existência antes posta em stand-by e tendente à atrofia.

Esforços da arte não faltam, na tentativa de nos esfregar no nariz os efeitos devastadores da solidão involuntária; é talvez nosso principal instrumento empatizador, nosso guru antropológico, de modo algum menos rico em desnudamentos só porque opera no campo da ficção. A ficção nos deixa ver sem viver, pressentir sem provocar, compreender no fundinho de nossa catarse em qual calcanhar o monstro pede flechada. Sempre voltarei ao caso recente, farto em paradigmas, do Coringa; quer filme mais ilustrativo do estrago causado pela indiferença emocional e institucional, pela carência absoluta de toque (exceto o da agressão), de escuta, de verdade, de cuidado, de ternura? Quer melhor retrato do quão profundamente um eu fraturado de nascença pela perversidade dos seus, divorciado de nascença de quase qualquer chance de aceitação num grupo, está sujeito a virar sujeito fraturado até as últimas consequências da dor – a virar alguém divorciado de si? Nunca escondi como a história me feriu e fere ainda, em especial pela certeza de que bastaria UMA iniciativa de afeto para que a degradação psiquiátrica fosse evitada. Na literatura, Frankenstein me ocorre logo de estalo como plot marcante de isolamento e rejeição, ícone das narrativas de você-me-gerou-e-agora-não-me-aguenta; um manual de produzir infelicidade, um romance de deformação, muito irmanado à tragédia coringuesca pela impossibilidade de considerarmos más as criaturas sem levarmos em conta a ação nefasta dos criadores. "Eita, mas você está comparando o Coringa e o monstro fabricado por Frankenstein com subjetividades reais, carne-ossissimamente humanas?" Uai, claro – porque SÃO subjetividades reais, projetadas por entranhas humanas, dotadas de reações reconhecíveis e verossímeis; sua dor não nos diria nada, não nos abalaria em nada se não nos espelhassem. Se não nos fossem.

Por sermos assim capazes de vivenciar a solidão representada no livro, na tela, no palco, na música, como se reencontrássemos em outrem um medo que já nos habitava, temos zírou desculpa para abandonar ainda mais os abandonados. É um chamado e uma obrigação amar nem que seja um pouco; mandar nem que seja um emoji de parabéns (para mim mesma o digo, já que ODEIO endereçar parabéns); marcar nem que seja num videozito de fofura explícita; dividir nem que seja meia hora de conversa, ludo, novela, presença, aniversário; estar por perto para uma refeição, uma ida ao mercado ou banco, uma leitura de romance em voz alta, uma lida na bula, uma lida no rótulo, uma força com o perfil do Face, um tutorial ligeiro de celular, uma explicação do capítulo, uma fração, uma redação, um empréstimo: nem que. Nem que apenas e meio confusamente pairemos em volta, nem que esvoacemos um leve gosto de companhia, nem que só rocemos o ser com o ser, imprecisos mas frequentes, diversos mas constantes, caóticos mas interessados – sinceramente interessados. Nem que sejamos uma energia de símbolo, uma curiosa, fluida, fresca promessa de vida.

Mas promessa cumprida.

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