quarta-feira, 7 de julho de 2021

Não existe dia derrotado


Sou louca num texto de Fabrício Carpinejar, "Não existe dia ruim", porque sou dessas e muitomente concordo. Pelo título, qualquer leitor mínimo entende com perfeição do que se trata – mas não me é permitido deixar de reproduzir aqui ao menos o finalzito dessa lindeza, que deveria ser acrescentada às orações diariamente transcorridas pelos lábios das crianças: "Não existe dia que não ganhe conserto. Não existe dia morto, dia de todo inútil. Não desista da alegria somente porque ela se atrasou. Pode ter recebido esporro do chefe, ainda assim a hora está aberta. Comer um picolé de limão é capaz de restituir sua infância. Não encerre o expediente com o escuro do céu. Pode não ter grana [...] e ter que escolher o que é menos importante para adiar, ainda assim é possível se divertir com o cachorro carregando seu chinelo para o quarto. [Quando acordo com o pé esquerdo, sou canhoto. Não existe dia derrotado".

Em minha defesa prévia, e por tabela a de Carpinejar, vou protestando contra protestos potenciais: nãããão operamos aqui com romantização da crise nem com positividade tóxica, que DESSAS não sou. Operamos com pura e simples sobrevivência. Acho baratamente nojentas, já o disse e redigo na força do ódio, as reportagens que elogiam o sabor da comida feita à lenha porque não dá mais para adquirir botijão, ou as que passam maravilhosas e nutritivas receitas de omelete porque a carne está impossível. ISSO é douração de pílula e cafajestagem, uma vez que assopros brotam das mesmíssimas fontes da mordida: são exatinhamente as grandes corporações midiáticas que, com a coerência infernal de sua natureza de grandes corporações, apoiam salivantes o arrocho do que é público, a "lógica" da austeridade, as reformas que inviabilizam mais e mais os caminhos do bem-estar social. Fazem-se então de lymdas as empresas – e espalham historinhas de superação e sugestões edificantes, pollyannando a rotina para o gigante dormir. A mim, parte do gigante, não interessa nada que o gigante durma; mas interessa consideravelmente que ele sobreviva.

Porque sem ALGUMA felicidade não sobrevivemos. Sem uma consciência mínima, minúscula que seja (mas com tamanho de se agarrar) de um gosto da vida, na vida, simplesmente passamos a não estar nem existir suficientemente para o básico da luta. E é como trampolim – jamais como sossega-leão – que acredito com muitíssima força na potência das minialegrias: colhidas com diligência, elas em geral são o que faz a gente se recusar à aniquilação, ao óbito. Vivos, moralmente vivos, autopercebidamente vivos, somos possantes, ainda que o gatilho levantador da chave de força seja olhar no espelho e constatar que o cabelo está direitinho feito o de uma diva dos anos 40, sem querer, sem tentar; ainda que o contentamento energético venha da perspectiva dum sabor novo de iogurte, dum filme novo na Netflix, duns filhotitos novos que talvez desembarquem hoje ou amanhã da cadelinha prenhe, dumas cores novas que a linha de tinturas lançou para incrementar o cabelo (de diva dos anos 40). Ficamos repossantes, às vezes, de resvalar num poema, de flagrar amanhecendo com arco-íris – hoje eu vi! –, de chorar num capítulo de novela, de trocar os cadarços cinza por duas cores de marca-texto, de descobrir que recomeçou o MasterChef (e pegar o programa iniciandinho), de jogar um dominó com o neto, de reencontrar um bilhete de nossos ex-vinte anos, de tomar um chá de maçã e canela, de se assombrar com uma banda no YouTube, de se enfiar com o inverno – e mais alguém, e mais ninguém – no quentucho do edredom.

Não existe dia derrotado. Mesmo sem o crachá de dia bom.

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