sábado, 3 de julho de 2021

Da arte de virar específico


Uma frase pinçada às páginas íntimas do querido Kafka, que hoje completaria 138 aninhos bem fornidos, perturba-me: "Dizer que me abandonaste seria injusto, mas dizer que estava abandonado e, no momento, terrivelmente abandonado, isso é verdade". Não é estranho considerar que se possa estar abandonado, assim de maneira adjetiva como quem está irado, parado, cansado, sem ter sido abandonado por nenhum agente da passiva isento de coração? E entretanto é coisa até bem ilustrável; alguém pode se ver congelado de bater queixo ainda que seu cuidador tenha se esmerado em empilhar edredons, bastando para isso que a criatura a ser aquecida esteja devorada duma febre toda particular: não foi negligenciada, não foi desassistida, simplesmente algo muito superior à intervenção alheia a consome, algo potente demais a assoberba e nem tudo quanto por ela se desdobre há de ser capaz de saciá-la.

Não deixa de ser a lógica dos amores incorrespondidos de qualquer espécie: o frio não cede a cobertor que não seja específico. Quando Kafka suspirou abandono, poderia, sabe-se lá, estar falando duma solidão direcionada e pontual, solidão com nome e sobrenome do ausente escritos na respectiva lacuna; poderia estar falando de um vácuo afetivo que não era vácuo afetivo, era ferida aberta, possivelmente tratada e mesmo assim sangrante, mesmo assim dolorosa. É também uma verdade dolorosa, esta, para os não abandonadores dos abandonados crônicos: toda a ternura empenhada recebe no máximo, em retorno, uma vaga gratidão, um reconhecimento intelectual e solene, não exatamente consolador para quem se desvela. Embora quem se desvela tecnicamente o faça por amor, claro – e tecnicamente não deva aguardar pagamento; mas isso não é sentir, é saber, e convenhamos que ao menos em caso de amor romântico essa gratuidade se complica. O perpétuo-abandonado-insatisfeito (a não ser que seja um fela) acaba acrescentando a culpa a seus males íntimos, o outro lado pode incorporar amargura e o caldo entorna de vez, com ninguém fazendo bem a ninguém, quando ambos queriam estritamente o melhor um para o outro.

Qual a solução para um descompasso tamanho entre lacunados e preenchedores? Amadíneos, se eu soubesse não estaria em residência purgatória no Brasil, já me encontraria RYKAH em Paris comprando flores diárias para a mesa da sala e croissants em volumes industriais. Porém me arrisco a chutar que a solução, se há, é uma quente, amorosa e macia paciência por parte dos que se dispõem a não abandonar os arredios. Não é autoanulação, autoimolação; é paciência. Uma esperteza muito tranquila no saber fazer-se agradável, em seguida necessário, mais adiante fundamental, progressivamente saudoso. Uma alegria muito mansa no limpar das feridas, no atar das fraturas expostas – devagar, devagar, como uma fisioterapia moral, um bocadinho a cada sessão. Uma doçura tão constante, risonha e sem fadiga que as velhas exclusividades, as velhas exigências do coração inconsolááável vão derretendo num banho-maria despercebido, um conforto com cheiro de carro novo brota da presença recente, os tijolinhos da resistência magoada viram ganache. Um único ensinamento é líquido, brega e certo: o amor habilidoso tem o monopólio de conquistar amor; mas quando digo habilidoso eu uso escala Florentino Ariza, o que me faz desrecomendar esperanças a qualquer um que se veja suscetível demais à ansiedade, ao ressentimento, à chantagem emocional (que inferno em vida, Senhor), à autodepreciação e à cólera.

Em caso de amor persuasivo, a carência de amor se deixa amar, e enfim ama; porém é verdade que o processo, na íntegra, transcorre sem prazo. Os que seguem com pressa não brinquem, que se tornar específico é arte dos que, nas demoras, só têm tempo a ganhar.

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