quinta-feira, 29 de julho de 2021

In natura

Fico sabendo que hoje é Dia do Batom lá nas bandas norte-americanas, e estremeço involuntariamente de desagrado; em verdade, de nojo. Sim, sempre tive um nojo horrendo de batom. Desde pequeninota (I mean, menorzota), ao ser forçada a usar o miserávi por causa de alguma apresentação na escola ou coisa assim, ficava com os lábios absolutamente tensos e desconfortáveis, sabedores de que qualquer fala, qualquer gole, qualquer esbarrão apagaria do rosto o esforço da maquiagem e poderia até se plantar no dente – eca, mil vezes eca. UM MILHÃO DE VEZES eeeeeca também, ou principalmente, quando alguma tia de batom forte me roçava o rosto durante os clássicos beijinhos cariocas e deixava um rastro daquela porcaria rosa-choque, vermelha, o que fosse; pouco me importava o grau de afeto pela meliante, o levar a mão à bochecha e esfregá-la vigorosamente era imediato. Era desfeita? dane-se; não sei quem foi o espírito de porco que inventou de as pessoas demonstrarem afeição ainda com esse troço na cara, e o passarem para a indesejosa cara alheia (um desrespeito aos que ODEIAM manchas), e com a mesma vileza darem BEIJITOS em papel para marcar território de um jeito que não pode ser simplesmente lavado. Como me dava ASCO que a escola inventasse, por exemplo, de as meninas da turma selarem algum cartãozinho de Dia das Mães com aquela marca horrorosa! Que injusto era, já que os meninos não precisavam passar por essa situação constrangedora e anti-higiênica!

"Credo, você exagera." Exagero não, meu querido e minha querida, ninguém chega nem perto de ter ideia dos assomos de nojidão que me tomam quando eu preciso – nem digo usar, porque agora, aos 41 anos, não preciso usar nadinha que não queira, mas – conviver com quem esteja usando batom vivo demais e sem um fixador que segure o bicho por no mínimo uma semana; e o negócio piora consideravelmente se a convivência envolve guardanapo e recipientes de bebida. Serei eu a única, ó céus, a morrer vários dias por dentro de ver a assinatura asquerosa do batom na borda de copos, xícaras, canudos? e a borração implacável sobre o papel e o tecido? Não se imagine que a sensação menos-piora se o batom for meu; nas rarissississíssimas ocasiões em que topo fingir usar essa bosta, demoro algum tanto para começar a comer e beber, tamanha a impressão aflita de que tudo que eu toco vira batom – ainda que eu consinta no máximo em um tom praticamente igual ao dos lábios, e em produtos com fixadores só arrancáveis depois de um mês. Rá! fixadores, eles dizem. Possivelmente por se sentirem rejeitados com tão decisiva violência, batons também me rejeitam e saem do rosto na primeira oportunidade, fogem de aparecer na foto ao primeiro vento. (Pra ser honesta, já vão tarde.)

Vejam, minha cisma/horror nem é só por troca de beijinhos e dinâmicas com itens de mesa; é por tudo: o receio permanente de o colorido traiçoeiro ir parar na roupa, a amolação de o cabelo grudar no bagulho quando bate a brisa, a impossibilidade de ignorar que a boca está numa camisa de força amarradora de movimentos (sinceramente, prefiro os lábios ressecados e rachados à aplicação da mais leve camadinha de protetor, mesmo incoloríssimo), a ansiedade de ficar na dependência do espelho (borrou? não borrou?), o pensamento ainda e sempre consternado da injustiça de os homens "não precisarem" usar. Ora, carambolas; se a cor e a textura originais são o bastante para bocas masculinas, para as femininas também o são; o que é suficiente para eles, em termos de aparência, é suficiente para nós – tenho dito. Fiquem aí os acrescentamentos de tom e brilho como uma diversão para quem gosta apaixonadamente dessas alquimias, e no mais não me chateiem. Mas hei de ser justa quanto ao desafeto de toda uma vida: hoje em dia o batom tem servido cada vez mais à liberdade e à igualdade, descendo de enfeite no rosto para alto-falante nas mãos; em muitos estabelecimentos, mulheres com um X vermelho na palma estão, mudas, emitindo toda a eloquência dum grito contra um ciclo de abusos domésticos – estão, na discrição do gesto, rompendo algemas de violência loud and clear. Nisso eu cedo humildemente e reconheço que, afinal, ter um batom possante na bolsa de fato empodera.

Às vezes é dia de sair pintada para enjaular a fera.

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