terça-feira, 20 de julho de 2021

Retrato de uma desconhecida


Adoro muito as pinturas (e os livros, e os filmes...) que retratam mulheres, por considerar que somos mil vezes mais interessantes; já o disse e reafirmo. Era então fatal que eu viesse a esbarrar com Valentin Serov, russinho existido entre os séculos XIX e XX e famosíssimo, na época, como retratista; vêm dos pincéis de Serov representações duma penca de princesas, músicos, intelectuais e mesmo do czar Nicolau – um gato, aliás, independentemente da lasqueira política por ele encarnada. Mas entre as obras do russo a que mais me impressionou, vejam só! foi justamente o chamado Retrato de uma desconhecida (1895), que podem admirar acima em sua potência assombrosa. Não sei se era de fato uma desconhecida e, se era, por que há de ter posado tempo bastante para o pintor copiá-la em tinta; ou será que era tão fotográfica a memória do artista a ponto de cruzar na rua ou num café com sua musa de ocasião e sketchzá-la em segundos, guardando para depoises apropriados o desenvolvimento daqueles olhos de ressaca? Ignoro, e verdadeiramente não importa – importa mergulhar na força estranha do quadro, no qual, talvez porque em tese se tratasse duma personagem que não seria sabida e apontada pelo grande público, Serov se permitiu devassar a dor sem dó, o tipo de dor socialmente oculto numa mirada de indignação e desafio.

Há tudo isso na expressão concentrada da desconhecida – a quem irei chamar Nadejda, ou Nádia, à maneira russa: existe ali uma bronca magoada e suspensa, um mudo j'accuse para o pintor atrevido (por extensão, o espectador atrevido) que ousa flagrá-la em seu momento de choro; existe ali o choro mesmo, não declarado mas sugerido pelos olhos avermelhados e fundos, e possivelmente já em remissão ou em situação de tristeza residente, dado que a pontita do nariz não se acha avermelhada; existe ali uma decisão férrea, tomada na força da mágoa ou do ódio, sem que deixe de haver também uma suavidade que se revolta contra o próprio endurecimento. É significativo que os olhos de Nadejda estejam na sombra, protegidos pelo movimento da cabeça que se conserva baixa o suficiente para indicar abatimento, e firme de sobra para manter a altivez; na sombra, classicamente, moram dúvida e mistério: o vermelho que adivinhamos onde deveria ser branco está realmente lá – ou é a pouca luz que nos ilude? o delineador está bagunçado como parece – ou são apenas seus cílios negros e densos como os cabelos, as sobrancelhas? há de fato olheiras nesse rosto que poderia ser tanto de uma adolescente quanto de uma mulher de 40 anos – ou é simplesmente o efeito da penumbra que, em compensação, deixa velada qualquer possibilidade de ruga? E a boca? a boca é uma tensão à parte, indecisa entre um ar de meio-sorriso constrangido, fake, e a contração muxoxa dum "só me faltava essa agora"; ainda assim, contemplando-se o conjunto mais longamente, vê-se em plena nitidez a doçura intimidada (quiçá bem-humorada) por trás da armadura.

Não sei o que aconteceu de específico à querida Nádia, porém de algo as cores do pintor nos avisam: há mais frieza do mundo para com ela do que o contrário; o lenço ou xale quente de tons que a cobre é, provavelmente, uma sua escolha de manter mornas sua imagem, sua natureza – é provavelmente um manifesto resiliente e orgulhoso, beijinho no ombro –, em resposta aos tons azuis, cinzentos, gelados do ambiente hostil. Dá-se entretanto uma yin-yanguice marotíssima; apesar do empenho de Nádia em vestir calor e sê-lo, um tanto do gelo externo lhe contamina a intimidade do interior da roupa (mas notem: o trechito que se azula toca-lhe o lado direito do peito, não o esquerdo, do qual só vemos a proteção quentinha). Ao mesmo tempo, no canto esquerdo do mundo azul pulsa como que um coração acarminado, vive um pedaço de exterior que mimetiza o xale da moça e parece declarar-se simpático ao que quer que ela sinta; quem sabe se não é o próprio Serov fazendo igualmente seu manifesto de solidariedade à musa momentânea? Registre-se a beleza sutil: do lado em que o entorno diz somente azul, Nadejda responde com azul; onde para ela existe um quê vermelho de empatia, mostra ela, também, o que possui de caloroso. Certamente não é coincidência que tanto o rosto quando o traje da musa estejam mais iluminados à esquerda, nas imediações da pequena mas real esperança de afeto que a vincula ao mundo.

Quem me dera ser isso: no meio dos acinzentamentos de rotina, a referência e o abraço dum ponto vermelho.

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