sábado, 10 de julho de 2021

Desaparência


Impressionou-me pensativa e agradavelmente um tweet compartilhado no Face, duma certa Clara R (@ramencult), que disparava: "I wish mainstream body positivity focused less on 'every body looks good' and more on 'your body does not exist for the purpose of beeing looked at'" (em tradução libérrima: "Eu gostaria que a positividade corporal padrão focasse menos em 'todo corpo é bonito' e mais em 'seu corpo não existe com o propósito de ser olhado'"). Li e suspirei a sensação de "é isso"; toda e qualquer campanha, propaganda, texto motivacional de alguma natureza mira sempre – e não sem razão – no acréscimo de autoestima baseado na beleza que cada pessoinha carrega, específica, intransferível. É lindo, é necessário, é correto, mas observemos: de qualquer modo a autoestima tem de estar atada à valorização da beleza que se verifica e consome externamente? Havendo ou não havendo uma linha única de ser fisicamente maravilhoso, DEVERIA ser uma questão a maravilhosidade física? DEVERIA ser dada tamanha importância à apreciação da superfície, e especialmente à apreciação endossada por outrem, aceita e confirmada por um abraço social?

Claro, não sou louca nem tão absurdamente utópica que não reconheça: somos seres grandemente visuais (sensoriais, para abrirmos o campo), e é um comportamento lógico, condizente com a biologia que não podemos evitar, sermos atraídos pelo que tendemos a considerar belo, ou enfeitiçador pelo lado olfativo ou sonoro; flores também seduzem insetos, aves seduzem outras aves, mamíferos se exibem para outros mamíferos – a programação orgânica não determina que assim funcione? Em sã consciência, no entanto, ninguém há de querer que SÓ funcionemos assim, matéria sobre matéria, no eterno intuito da procriação mais básica; oh, please. Se é impossível eliminarmos de nós os pedaços de instinto e hormônio que somos, é incabível na mesma medida nos negarmos como um ponto foríssima da curva animal, um extraordinário desvio; é incabível não exaltarmos, celebrarmos, priorizarmos esse desvio que justamente nos individualiza. Nascemos mais – pois sejamos mais; e, se não o fizermos pela capacidade espontânea que realmente não temos, façamos na marra.

Porque convenhamos: por mais que seja em tese "natural" decantar a beleza humana, e por mais que tenham aumentado louvavelmente os esforços para abarcar inúmeras manifestações de beleza, ela sempre foi e ainda é um instrumento cruel de avaliação e valorização; se querem um exemplozinho doloroso de mencionar, pensem na primeira coisa que costuma escapar-nos quando vemos fotos de vítimas fatais – "ah! uma jovem tão linda!", "um casal tão bonito!" –, como se a perda ficasse 1g mais ou menos enorme pelo fato de as pessoas envolvidas se encaixarem ou não no conjunto de características festejadas. Não o exclamamos cruelmente e não deixamos por isso de ser cruéis, tanto quanto o somos (também de maneira involuntária) quando soltamos um "feio! feio!" para qualificar uma criança pequena que agiu errado, e quando elogiamos – e criticamos – muitíssimo mais as meninas do que os meninos segundo critérios de aparência. Desde cedo são elas conduzidas a saber direitinho o que "convém" nas combinações de cores, nos penteados, enfeites de cabelo, batom, esmalte, comprimento, estampa, largura, enquanto neles é sobretudo aplaudida a energia e a atividade, mesmo que toda a energia se traduza em voltar para casa irreconhecíveis de pó e lama e com 87% dos membros ralados na brincadeira. Quantos pais/parentes conheceis vós que SE ORGULHAM da garota que volta da escola ou da praça suada, rasgada, enlameada e descabelada, quantos dizem aos amigos que ela é pura força e saúde em vez de lamentarem que "nem parece uma mocinha"? Pois então. É mui principalmente por elas, por nós – desde o início estimuladas a agradar e a captar afeto pela aparência –, que eu reforço: NINGUÉM deveria aprender que se obtém mais ou menos do mundo de acordo com a quantidade de prazer que outros olhos experimentam ao nos analisar.

É só essa a emenda que proponho à frase estampada no tweet; olhados queremos e merecemos ser, já que configura uma constatação de existência (imagina um planeta cujos moradores não se dão sequer ao trabalho de virar o rosto em direção a outros moradores, todinhos mútua e inteiramente alheios?), porém julgados – não. Avaliados, não. Classificados, examinados, rotulados, nãããão. O que conviria excelentemente à espécie era o direito supremo de ter corpo sem SER corpo, o direito de não dever satisfações visuais, de não se ver em compromisso com nenhuma opinião, nenhuma preferência estética, nenhum provimento de conforto e deleite para outrem. Óbvio, não estou falando de lunáticos poderem tatuar suásticas na testa sem serem incomodados, por exemplo, porque aí não nos atemos ao visual e superficial, aí mergulhamos no histórico e simbólico; estou falando de desenhar os membros sem discurso de ódio, de usar o cabelo metade verde e metade roxo no tribunal, de vestir xadrez com flores e poás porque deu na telha, de ser gorda e amar minissaia, de meter um girassol na lapela, de ignorar o que seja tábua de passar roupa, de ir ao mercado com chapéu vietnamita, de ir à padaria com salto alto e pijama. Estou falando duma viável liberdade fashion, desvinculada de indústrias, desamarrada das preferências dos homens, das conveniências dos homens, das fantasias dos homens; uma liberdade alegre, assumida, tranquila e de criatividade aleatória, a ser praticada com felicidade quando enfim atingirmos um estágio aceitável de evolução.

Porque há de ser cada vez mais fato: como o velho ferro a vapor que anda ignorado na despensa, objetificadores de gente NÃO-PAS-SA-RÃO.

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