segunda-feira, 19 de julho de 2021

Não sei para onde vai o texto

O texto é tão estranho, tão estranho. Sua materialidade é tão imponderável e feita de futuros. Digo isso porque, às vezes, já tenho dois parágrafos gordamente escritos sobre algo sólido, mas me parece que o texto escapa em desespero porque não há uma conclusão firme, planejada, e apenas tateei até ali num túnel; quando outras vezes, muitíssimo ao contrário, não fiz nada, não comecei nada, não encaminhei nada e ainda assim me encontro tranquilinha, porque me sinto tão grávida do assunto que as contrações indicam: há de ser parto rápido. Há de ser talvez uma brincadeira, um frescobol sem grandes compromissos ou necessidade de altas teceduras. Como assim é bom! Como é refrescante o sentimento de "prova no dia seguinte" quando a matéria já está entranhada nos poros e não demanda horas de digestão intelectual dificultosa!

"Ah, mas é legal ser difícil porque aí traz desafio e a gent..." – a gente o caramba, não é legal ser difícil; é legal ser interessante. É legal ser estimulante. Se há estímulo, se existe um gosto todinho específico em robustecer o texto (escrevendo em rimas, digamos, ou catando flores das sete cores arco-íricas, ou escarafunchando eventos felizes de variadas sextas-feiras 13), o desafio pode sim soar bom e cair bem, pode ser vivido com o mesmo gozo de quem começou a refeição com apetite. Se, no entanto, não rola qualquer grau de desafiância a não ser descobrir como ordenhar um assunto sério, eventualmente enfadonho, desculpinha: vai ver que até evoluo numa tal empreitada sem o sentir, mas nem por isso me vejo (à moda do querido e vigoroso Gil) regozijada. Cumprir o ofício é ótimo; cumpri-lo empurrados pelo elemento lúdico que é bem nosso número e gira nossa chavinha particular, porém – ISSO sim é a dificuldade legal; isso sim é a beliscada que incentiva e põe tompero no serviço. Escrever é evidentemente suor, tanto quanto o são as demais atividades todas, e é felicidade não menos (ainda que possivelmente não mais).

Diz a maior parte dos escritores: não gosto de escrever, gosto de ter escrito. Procede em termos, sem deixar de ser uma heresia; quem, afinal, mergulharia em sã consciência nas funções ingratas e desremuneradas da literatura se não achasse ali uma qualquer Disney do pensamento, se não encontrasse uma qualquer diversão mesmo masoquistazinha, se não adivinhasse algum esquisito conforto no ato de convocar palavras quase a esmo para bater bola numa Copa imaterial? Por mais que o escritor se veja tenso com o jogo, concordemos, ele o ama nem que a partir do fígado – ele ama o campo elástico, fluido, massinho-moldável que existe só entre aquelas margens, ama pastorear nuvens, ama ser sozinho o tijolador dessa bizarra arquitetura de sons, de sílabas, de nadas. O escritor se descabela em seu próprio éden gauche e se delicia em sua jaula autoconstruída, doma feras que ele inventa e tem de se provocar uma cesariana para transcrever as belezas que imagina, encolhe-se e expande-se dentro das mesmas paredes fumaçosas que levanta. Sofre terrivelmente com o que seus filhos verbais se tornam enfim – e adora tantricamente cada esquina de sua intraviagem intransferível. Interminável.

(Interminabilidade: esta a asa que faz o texto voar tão estranho, tão capenga, parece, do equilíbrio de voar que TALVEZ só venha a produzir enquanto voa.

Feito uma pessoa.)

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