sexta-feira, 2 de julho de 2021

Como reticências entre parênteses

Fosse viva, a assombrosa poeta polonesa Wisława Szymborska completaria hoje seus belos 98 anos. Já a citei aqui muito, se tudo der certo virei a citá-la mil vezes ainda, ela que parecia levantar ovos de Colombo a cada linha: versos tão precisos, tão perfeitamente sólidos que é como se sempre tivessem sido, como se fosse óbvia sua existência potencial até que alguém finalmente os constatasse. Maldade ter de escolher um só texto entre sua floresta de monumentos, mas na impossibilidade mesma de ser justa eu fotografo, sem maiores dúvidas ou dramas, o poema "Dia 16 de maio de 1973" (na tradução de Eneida Favre), irresistível porque imediatamente intrigante: "Uma daquelas muitas datas/ que já não me dizem nada.// Aonde fui nesse dia,/ o que fiz – não sei.// Se houvesse um crime nas proximidades/ – eu não teria álibi.// O sol brilhou e se apagou/ e nem me dei conta./ A Terra girou/ sem menção no caderninho.// Para mim seria mais fácil pensar/ que morri por um tempo/ que pensar que nada lembro,/ embora vivesse o tempo todo.// Eu, afinal, não era um espírito,/ respirava, comia,/ dava passos/ que podiam ser ouvidos,/ e as marcas dos meus dedos/ devem ter ficado nas maçanetas./ Eu me refletia no espelho./ Vestia algo de uma cor qualquer./ Certamente algumas pessoas me viram. [...]// Sentimentos e sensações me preenchiam./ Agora tudo aquilo/ é como reticências entre parênteses.// Onde me escondi,/ onde me enterrei –/ até que é um bom truque/ sumir assim da própria vista." Avança só um tiquitito mais o texto, mas o grande ramo que extraí e de que mal pude eliminar uma ou duas folhinhas basta; já não é, em sua aparentíssima simplicidade, um chute existencial nos chakras ou na canela? Eu, ao menos, não pude me abster dum desconforto feito de reflexões nada inéditas ou desconhecidas. O poema me fala em particular porque sempre existiu para mim até que Wisława o pusesse de pé.

Desde há muito me incomoda, sim, essa nossa debilidade de memória, essa nossa impossibilidade crônica de nos abraçar inteiros a ponto de nada de nós nos ser ignorado; confesso meu susto ao esbarrar em qualquer anotação antiga, rabisco antigo, bilhete antigo e não fazer ideia do que aquilo significava para a menina ou moça da qual eu era o endereço. Como é que um pedaço tão relevante de um dia, uma época pode ser simplesmente cancelado de nosso registro de afetos? Como é que o sentimento de um dia só que seja – unzinho mais amargo ou preocupado ou contente que chegamos a viver – some assim dedo-estalarmente, bastando para isso que continuemos inexoravelmente vivendo? Lembro um espanto profundo, um abalo perplexo de constatar, certa ocasião em que revirava uns meus papéis de escola adolescentes, que era INCONCEBÍVEL ter morado em mim a pessoa que estudara aquelas fórmulas, que as soubera, que as aplicara; olhar materialmente para os números antes compreendidos, para as informações frequentadas antes, foi ter em mãos as cinzas dum eu cuja existência se finou sem que me enviassem um avisozinho de passamento, e me doeu um pouco uma culpa misteriosa, como se eu tivesse faltado à responsabilidade de nutrir alguém morto de inanição.

No entanto era essa mesma a pessoa-em-mim que eu sempre soubera moribunda, já que apagar todas as matemáticas odiadas era um anseio e uma promessa solene. Se ainda assim me chateou a perda de acesso aos arquivos de meus velhos eus, que dirá o escoamento totalmente involuntário de memórias que, ao contrário, eram em sua época importantes, significativas, queridas. Não que me agrade ficar nostalgiando – sou muitíssimo o oposto; inclusive me perturbam vivamente os perfumes, os filmes, as cenas, as músicas que foram marcos existenciais de alguma idade, algum momento; mas me perturba também a noção da perda do controle sobre as camadas de identidade, machuca-me a compreensão constatar que partes inteiras de quem somos desaparecem em limbos, dificultando consideravelmente uma plena autotomada de posse. Não quero saber tudo, lembrar tudo, sentir de novo tudo, vade retro! eu precisaria ser internada ou sumariamente explodiria; porém eu TALVEZ quisesse ter a consciência do que não recordo, em especial a consciência de que não há nada ali que tenha sido relevante o suficiente para ser recordado, e que pode, portanto, receber autorização cem-por-centíssima de descansar em paz.

Não quero guardar tudo. Mas quero saber o que não guardo mais.

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