segunda-feira, 12 de julho de 2021

Céu ao pôr do sol


Sou fãããã dos impressionistas, porém confesso: não muito fã do hojeniversariante Eugène Boudin (197 aninhos bem pincelados). Por quê? Porque Boudin, tendo sido marinheiro, garrou uma natural mania de marinhas, e quem mergulha em seu gordo portfólio vê basicamente barcos, mar, barcos, mar, praia, praia, navio, praia, pessoas na praia, lavadeiras, lavadeiras, pessoas na praia, barcos, navios, navios, lavadeiras, barcos, navios – e de vez em quando, não sei exatamente por quê, uns surtos de vacas, vacas e mais vacas. Logicamente não desmereço o pintor, icônico e extraordinário; apenas os temas e a constante cinzazulice nunca me provocaram o favoritismo apaixonado e florido que Monet, por exemplo, provocou sempre. Mas uma exceção me seduz bem bastante na obra de Boudin: preciso dizer que exatamente a imagem vista acima? do fantástico Céu ao pôr do sol, nascido em 1890; ao contrário do padrão úmido, frio, salpicante de maresia e espuma presente nos demais quadros praianos do autor, neste o velho Eugène simplesmente se inundou de fogo, foi como que arrebatado por uma impressão dourada, uma alegria quente, uma solaridade forte e súbita. O mar e o azul ainda estão presentes, mas não são de modo algum o foco; só um trechito de água se insinua entre areia e céu, e mesmo o céu troca serelepe seu uniforme pela roupa de brincar, alaranjada, viva, inesperado lado B que se liberta quando crepuscula.

A tela me comove tanto mais quanto mais consegue ser (incrivelmente) concreta em toda a sua travessura abstrata; a rigor não há praticamente contornos, há uma bagunça colorida, uma festa sensorial, pinceladas como serpentinas que se agrupam sem critério aparente quando vistas mais de perto – e que no entanto, de longe, mostram uma coesão poderosa e absurda com sua proposta de nuvem, também conhecida como o Impressionismo em sua glória. Comove-me igualmente, apesar de eu amar os rosas e os lilases do dia findando, a escolha (pode-se dizer que) inusitada de tons feita pelo artista, que se jogou na ousadia de praticamente excluir os rosados e apostar nos opostos gelado e ardente, azul e laranja; é quase um céu vestido de mar e de terra, mais desta que daquele. Uma composição visual que não se vê todo dia. Para arrematar, que falta à terra? flor; flor não há, mas há num ponto central do céu algumas das únicas tintas avioletadas, como uma pétala ou um beijo que bota um pouco mais de doçura no que é pura força. O branco contribui para essa leveza focal, e curiosamente me evoca alguém que desejasse amarrar a cena com um brinco de pérola.

Motivos externos ao quadro também me fascinam no quadro – a saber: a paixão que tenho por quando entardece com cores estranhas, quando uma luz toda amarela ou vermelha bate em cada janela da casa (adentrar, não adentra, que já não tem força de invadir nada nesse horário) e me chama para ver lá fora, para conferir o insólito da aquarela. Como amo os crepúsculos esquisitos! pintam no mundo um clima de que existe uma preparação para algo, paira uma expectativa, que nem na formação estrodoante e pesada dos torós. O anoitecer de Boudin é bem desses, não pode ser um desfecho, é claramente o início de fatos que apenas não sabemos ainda, fatos a serem narrados depois com "era uma tarde densa, ruiva, dourada, cheia de eletricidade dramática" – porque anoitecimentos cheios de eletricidade dramática são os únicos aceitáveis para datas-sede de eventos de médio e grande porte, como casamentos, aberturas de Olimpíadas e revelações de assassino de novela (ou de parentescos eternamente procurados e finalmente abraçados com requintes de musicalidade).

A verdade é que, por direito, só era correto dia-cair-se colorido; cada sessão de 24 horas é uma ópera que somente sons, fúrias, ondas, veludos e pérolas podem suficientemente epilogar.

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