quinta-feira, 8 de julho de 2021

Krasosmutněn


Tem tudo a ver com momentos invernais essa palavrinha tcheca aí do título, que acabei de ficar conhecendo; Krasosmutněn, um daqueles termos verdadeiramente impassáveis de língua para língua, significa algo parecido com uma "bela tristeza", uma "melancolia alegre". Desconfio que compreendo. Apesar de haver brotado consideravelmente longe das terras de Kafka, das velhas paisagens doce e dolorosamente boêmias de tantas histórias de fé e sangue – claro, também temos as nossas; mas que contextos outros! –, eu creio pressentir de leve o que seria um certo contentamento nublado, uma faixa de cor sobre pano cinzento, com um quê de dança cigana e um quê de sobrevivência à própria expatriação. Brasileiros, carregamos no fundo de sambas, modinhas, sofrências um bocado de tristeza sem dúvida (senão não se faz um samba, não), porém só consigo ver a nossa como melancolia pós-dia de sol, com mais marrons e laranjas e menos cores de outono, enquanto Krasosmutněn a lógica me força a conceber como um brilho de lareira nos olhos e uma bochecha vermelha ante um panorama nevado. Nenhum vocabulário tcheco pode calhar de descrever-nos, pode? não creio, em nome das coerências climáticas e históricas; assim sendo, declaro que a palavra fica designando um tipo de desolação resiliente muito própria de tretas europeias milenares, muito distinta de nossas desolações resilientes mais sertanejas e frutadas; um sentimento confuso que é da fauna do frio e não das veredas tropicais.

De-tes-to-fri-o, mas não me desagradam completamente algumas – algumas! – facetas do tempo mais fresquildo, que é com certeza habitat muito mais natural de alegrias pouco expansivas, serenizadas, discretas. Não que eu não seja alegre; apenas me cai melhor protagonizar momentos de contenteza feitos de recolhida agridoçura, à moda da palavrinha tcheca como eu a entendo: um desconsolo fino e íntimo que canta, canta sempre, embora cante sobretudo para si e sobretudo a respeito de um desterro particular. Gosto bem desse contentamento descontente que, para não se partir, o tempo todo se verga, se molda e se flexibiliza, não se entregando quase nunca à euforia inteiramente manifesta – porque sabe ser feliz no instante e sabe não esquecer que, em especial na esfera coletiva, falta um bom pedaço de futuro.

É tão reconfortante a bela tristeza (para quem viu Divertida mente, aliás, fica impossível não pensar que Krasosmutněn deve ter MUITO a ver com bolinhas azuis e amarelas se misturando em memórias-base características de corações que amadurecem). É tão pacificadora daqueles que se veem intimidados pelo código geral de diversão espalhafatosa, de entusiasmo compulsório, de saltitância eternamente prestes a festas e encontros, a trilhares e desbravares. É tão mais acolhedora, mais respeitadora das mixagens do humor que não costuma ser mesmo plasmado e uno – quando se tem mais de 2 anos –, mas sim vário e intercambiável, com muitas tintas se dançando mutuamente que nem os arcos-íris das bolhas na beirinha de rebentar. Ainda que nós, filhotes de baixo-Equador, não cheguemos nunca a captar o sentimento intransferível e intraduzível da velha Boêmia, nosso parentesco humano basta e satisfatoriamente suspeita: a tristeza, se tempero e não prato principal, se pitada e não quilo, configura um traço de homo-sapiência humilde e vulnerável, uma porta para o abraço e a empatia.

Muito mais eficientemente que a autodistraída alegria.

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