sábado, 31 de julho de 2021

Podem dizer que não falei das flores


Cem anos; exatos, redondíssimos cem anos. Edição 210 do Jornal do Brasil, domingo, 31 de julho de 1921, página 15 (estou impedida de printar e reproduzir aqui devido a direitos autorais, creio, mas convido os duvidantes a visitarem nossa ótima Hemeroteca Digital e conferirem com seus olhitos. Não vos culpo: também mal pude acreditar nos meus). Chocando todos os bons sensos possíveis, eis que se encarapita no canto superior direito um "Concurso das Flores" – OK até aí –, abaixo um "Hoje 7 coupons" – certo, beleza –, abaixo um "Alguns dos brindes que distribuímos" – opa, vejamos... e então o pasmo: duas AR-MAS! descritas como uma "magnífica espingarda para caça, da conhecida fábrica Harrington & Richardson [...], acompanhada de uma caixa de excelentes cartuchos" etc. etc., e um "superior revólver do mesmo fabricante [...], também acompanhado de munição" parará, parará. Não, os olhos engasgaram; não, não, simplesmente não. BRINDES DE CONCURSO?? DAS FLORES?... Pois eram. Eeeeram, amigues – e não pensem que acabou, o mais estarrecedor vem agora.

Do lado direito (claro) aquelas armas terríveis, horrorosas, medonhas, ambas apontadas para a esquerda; e sabem qual era um outro prêmio do tal concurso, posicionado (claro) à esquerda? Uma "riquíssima IMAGEM DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS", assim com caixa-alta do jornal mesmo, além das devidas especificações do fabricante. Parece que havia mais brindes, como um conjunto de poltronas e uma passagem marítima de primeira classe para Buenos Aires, mas me foi impossível prestar qualquer atenção decente ao que não fosse aquele retrato preciso, centenário, do que teimamos desgraçadamente em ser: um país que trata com a mais estapafúrdia naturalidade equiparar instrumentos de morte a imagens sagradas, tudo cozido num caldo de burguesice estúpida, cínica, leviana de um concurso para a família numa edição dominical de periódico.

Verdade que posso pollyannar em autoconsolo, dizer-me oh! como evoluímos, hoje em dia essa aberração jamais estaria estampada em páginas de jornal, jamais seria nem levemente considerada como premiação; já imaginou o gigantismo da treta? Inimaginável, pois é. Isso, porém, não chega a dar reconforto que chegue; é forte demais, grande demais o peso simbólico da malfadada figura para que não corra um arrepio até a ponta do cabelo, um estremecimento das sinapses que se fazem à revelia. Aquilo de há cem anos é uma polaroid em nosso histórico, um instantâneo em nossa linha do tempo hipócrita, carola e bárbara, construída numa promiscuidade de beatices de novela com jaguncismos de sala de estar. Não que eu considere a religião carolice, muitíssimo ao contrário; sou e sempre fui católica, sei perfeitamente que as religiões praticadas de alma e não só de pele manifestam necessariamente o amor por ações – e NENHUMA OUTRA possibilidade de prática religiosa existe: ou promove o bem comum, ou não é religião nem aqui nem depois de Plutão. Por ter certeza dessa obviedade é que espumo de fúria! ao ver uma das maiores metonímias de mansidão e ternura colocada na mesma categoria do que fere e destrói. Fúúúria de ver que, provavelmente, para as famílias que concorriam aos brindes estavam ali seis e meia dúzia; a casa que recebesse um com toda a tranquilidade receberia o outro, sem assombro aparente. Bem este foi o meu choque: que estampar essa monstruosidade não tenha deixado ninguém chocado.

E a semiótica da coisa? Ostentar não uma, mas DUAS armas de fogo apontadas para Jesus. DUAS – sendo uma bem na direção da cabeça. É tão absurdo e espantoso que, afinal, pode até servir como uma espécie de desagravo, já que mal ou bem acaba posicionando com clareza o mal e o bem, nunca apenas coexistentes, sempre antagônicos. Tortamente, ato-falhamente, a escolha freak da diagramação se autodenuncia: estamos fazendo aqui um bagulho cabuloso, esperamos que notem, esperamos que percebam que armas e religião são mutuamente excludentes; se aparecem juntas, vocês veem logo qual dos lados está sendo assassinado.

(O mesmo que vem sendo torturado e assassinado com a recorrência de muitos milênios, e que ainda assim continuará se negando a portar instrumentos de morte com a constância de dois mil e sempre.)

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