domingo, 4 de julho de 2021

As mãos e a luva

Sendo bastante óbvio que j'aime l'amour (assim mesmo em francês, língua feita para amar, quando não está derrubando a Bastilha), nada mais apropriado que eu homenageie um aniversariante de la patrie babando-lhe uma das obras mais doces, mais impressionantes – e provavelmente das mais apaixonadas em toda a história da arte. Essa lindeza aí acima, Le baiser (O beijo), veio dos pincéis de Charles Auguste Émile Durand, autoapelidado Carolus-Duran, retratista fenomenal nascido há 184 anos exatinhos. Dizem mesmo que a tela não lhe veio só dos pincéis, mas muitíssimo d'alma, colocando-se entre as primeiras selfies amorosas de que se tem notícia; afinal, os dois enamoradíssimos em questão seriam o próprio autor e sua (já então?) esposa Pauline Croizette, ela também pintora – pastelista e miniaturista –, romanticamente filha de uma bailarina francesa e parece que de um grande senhor russo. Para CÚMULO de século-dezenovice e de delícia clichê, ambos se conheceram nas salas do Louvre, aonde iam os artistas copiar obras dos velhos mestres. Suspiros oitocentistas.

O que mais adoro em Le baiser é absolutamente tudo; não há um cantito, uma pincelada que não seja um combo de desejo e ternura. A luz intensa sobre o casal, fora do qual praticamente não sobra senão escuridão (em qual encontro de dois ébrios recíprocos NÃO é esse o sentimento?); a rosa nos cabelos da amada, certamente posta aí pelas mãos do moço, uma das quais já está mesmo perdida entre as ondas castanhas e as sustenta com o mesmo tanto de ímpeto e de delicadeza; as outras três mãos, cada uma um poema à parte: a direita dele – tocando-a não tão alto que possa desrecatá-la como uma flor de seu tempo, e não tão baixo que não roce sofregazinha e meio sem querer o seio; a esquerda dela – tentando e não tentando deter as pequenas ousadias de seu amoureux, levemente tensa talvez, mas não tensionada o suficiente, mais entrega do que restrição; a direita dela – afundando-se nos cabelos dele e presumivelmente puxando-o para si, embora conte muitíssimo menos uma história de posse que de incondicionalidade e carícia autoabandonada.

Esse erotismo suave de avanço e recuo, de receio e confiança encontra uma metonímia a mais no vestido da suposta Pauline: as mangas são longas comme il faut, porém graciosamente transparentes, e deixam ver por inteiro os braços que cobrem por inteiro; e o próprio branco rendado, etéreo, denotador clássico de inocência é recoberto pela sensualidade vermelha da manta – sobre a qual, aliás, pousam os dedos querentes e maliciosos (mas maliciosos devagarinho) do suposto Charles. Há outros sinais marotos da linha fina, deliciosa, entre ingenuidade e volúpia, como a meia duzinha de pétalas escapadas à rosa que enfeita a bem-amada, o próprio caimento da manta sob a bem-amada – em formato de rosa –, a promessa de nudez simbolizada pelas luvas largadas e displicentes (em outro retrato de Pauline, no ano seguinte aO beijo, o artista usou explicitamente a metáfora ou o fetiche, pintando a esposa vestida toda de negro para conferir mais destaque à luva languidamente branca a seus pés, e a seu movimento de ir despindo com certo ar de desafio a segunda luva), além do leque igualmente negligenciado; um leque, afinal, é código de sociedade e salão, e sociedade/salão não parecem achar lugar na possança do encontro amoroso. Abaixo da luva, das flores, do leque, ainda uma piscadinha para o contemplador voyeur na forma duma pequena folha desenhada com contornos de coração: um OWN para selar nossa rendição eterna.

Não pode enfim deixar de comover-me um arrepio, essa eletricidade que há na boa e velhíssima arte, no bom e velhíssimo amor, de correr por nós e falar a nós em completa liberdade de contexto e de tempo. Nenhumas outras linguagens, nenhumas! nos transformam num eco tão possível de verdades humanas; um beijo dado ontem nos acarinha hoje na memória não vivida, quase como se bastasse ter vivido para que a lembrança pulsante do outro – no outro – seja o nosso número.

Nenhum comentário: