quinta-feira, 22 de julho de 2021

Pontes de ouro, pontes de prata


Encantada de saber de repente que, em língua húngara, existem os termos aranyhíd – "ponte dourada", para designar o reflexo do nascer ou do pôr do sol na água – e ezüsthíd – "ponte prateada", para nomear o reflexo da lua. Não apenas encantada: absolutamente encantada e vestida de alumbramento; não diz muitíssimo da poesia de um idioma que haja termos específicos para imagens só aparecidas aqui-e-alimente, mas sem dúvida responsáveis por algumas das impressões mais belas de qualquer panorama?

Pela doçura da descoberta que elevou o húngaro à minha mais alta ternura (não é sempre que deparamos uma lexicografia comprometida, em delicadeza, com o interesse de fadas, fotógrafos e pintores), fui pesquisar mais um poucochinho de cintilâncias potenciais nessa língua simpática, também conhecida como magiar. Sim, magiar; provavelmente não tem bulhufas a ver com a nossa magia, mas o pensamento que faz a relação coça irresistível, visto se tratar dum vocabulário construtor de pontes de ouro e de prata. E não só delas, conforme imaginei ao dar o minimergulho num tão atiçante dicionário – vejam que belezume estes outros achadinhos:

Elmosolyodni, segundo apurei, é uma espécie de microssorriso, o início de (uma ponte para?) sorrisos propriamente ditos e avistados. Hiányérzet é a sensação de que algo está faltando, e não necessariamente um algo identificável, exprimível, o que torna a palavra como que uma versão esfumaçada e etérea de nossa saudade, em geral muito endereçadinha. Nebáncsvirág é o serzito enjoado, melindroso, que se ofende com qualquer coisa. Sirva vigad – um verbo – envolve lacrimejar e alegrar-se num só pacote: vivenciar prazeres entre lágrimas, passar por instantes emocionados com essa estranha melancolia que ri e chora. Pihentagyú – um adjetivo – já é mais animado, sem no entanto perder o que parece haver de (va)poroso no magiar: indica alguém que tem "o cérebro relax" e que, em consequência-contraste, apresenta um pensamento ágil, piadista e/ou capaz de soluções e decisões sofisticadas. Mas meu termo preferido, ao lado dos reflexos de sol e de lua, é o puro-açúcar szerelem, doce até em som; equivale a "amor" – porém não qualquer amor, e sim aquele da vida, o da alma gêmea, devidamente correspondido. Creio eu que cobrir alguém do querido szerelem seja o vestir da aliança em sua forma verbal.

De que jeito, então, fugir a um estremecimento de dor ante a triste lembrança de que os donos dum magiar tão mágico, de tão tamanhas camadas sutis, estão (como nós) sob o comando de um sujeito desdotado de toda sutileza, toda empatia, toda mínima capacidade de desvendamento humano? Há tempos a tragédia encarnada em Viktor Orbán vai minando os direitos mais fundamentais dessa humanice sagrada: procura sufocar discussões sobre gênero nas escolas, muda a constituição para estabelecer que há apenas pai-homem-mãe-mulher e acabou-se, passa por cima da identidade de pessoas trans e intersexuais. Justamente por vivenciar por aqui o que ora vivenciamos, posso doer-me da dor da cara Hungria, doer-me de não ser TOLERÁVEL que uma cultura tão colorida e rica se veja refém da violência, do preconceito e do absurdo impropriamente ditos e avistados.

Um povo que nomeia ouros e pratas vindos de sol e de lua é, por natureza, maleável para arco-íris e demais horizontes. É feito para pontes.

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