terça-feira, 19 de outubro de 2021

Destempo


"Saudade de um tempo?" (palavras de Mia Couto); "Tenho saudade é de não haver tempo".

Assim, assim mesmo: não tenho saudade de tempo nenhum específico, nenhum encadeamento particular de rotinas e feitos, principalmente considerando que na maior parte das épocas idas eu era aluna – e, céus, por coisa alguma deste mundo gostaria de me ver novamente aluna, debaixo das obrigações respectivas; nada de estudos forçados, trabalhos, provas, alunice agora somente por diversão. "Mas você não sente falta de dias, acontecimentos?" Eu lembro dias e acontecimentos, o que não significa dizer que sinta falta deles; sentir falta me parece, necessariamente, ter uma implicação de querer de volta, e querer de volta tem todas as implicações do pacote completo: aceitar no combão as antigas idades, os velhos medos, incapacidades, micos, as não-sabenças do futuro onde já moro. Eeeeeeu, heeeeeein, pois se vou cair nessa esparrela! jamais, jamaisito; talvez felizmente, sou dotada de impressões que coexistem num abraço paradoxal – o encantamento pelo que é romântico e a inaptidão para romantizar as etapas vividas, cujos perrengues recordo que é uma beleza. "Então você nunca foi feliz?" Ao contrário: sempre fui, de maneira geral; tanto que sempre tendi a acreditar nos melhoramentos e na desnecessidade de repetições. Se tudo foi válido, nada honra mais o que foi válido do que colher e mastigar em paz suas consequências.

Porém sim: tenho a saudade impossível do não tempo, a gula eterna de não pertencer a nenhuma realidade com prazos e horários. Não quero o que já houve, quero o muito improvável de haver – a liberdade dos pequenos contentamentos que não se encerram, dos compromissos que não pressionam; quero as férias desacorrentadas da contagem regressiva, os fins de semana sempre infinitos até a musiquinha final do Fantástico, as viagens isentas de passeios agendados e gentes apressantes, de guias possessivos e excursões cronômetras. Quero o destempo, o intempo; quero o adentramento pelo pitoresco de uma cidade sem ninguém esperando, sem encontro marcado, sem combinação feita; quero a flânerie sem grupo, sem chamadas alheias que não pertençam também ao atempo, sem lojas que se fecham, sem restaurantes que não servem antes ou não servem depois (não, não desejo que funcionários trabalhem indefinidamente, desejo o oposto – que brinquem, valsem e passem períodos incontáveis com as famílias; dentro da atemporalidade mágica, lojas e restaurantes funcionam por si mesmos e pessoa alguma bate ponto, ou bate na hora que melhor lhe convier). Que não é coisa para este mundo, desconfio, mas posso por causa disso deixar de querer? Assim é que desde o princípio sou ou fui estruturada: sonhando com a paz cronológica – aquele estado de felicidade de quem boia no que ama, entregue, dono único do momento, liberto de qualquer risco de invocação ou insolação.

(Bem por isso o céu há de ser mesmo integralmente livre do tempo: nele é que todos os focos do amor estão.)

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