quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Meu grande sonho é ser gente


Foi o desabafo dilacerante de Rosângela Sibele, a mulher de 41 anos que (quase) furtou alguns itenzinhos alimentícios e, por causa do (quase) furto equivalente a R$21,69, passou 18 dias na cadeia: "Meu grande sonho é ser gente. Eu ainda não sei o que é isso, não sei o que é ser mãe, filha, irmã". Se doeu estraçalhantemente ler a declaração dada por Rosângela em sua soltura, nem consigo imaginar a dor de VIVER essa declaração mesma – dormir, acordar, respirar, mover-se sob a acachapante impressão de não pertencer à espécie dos demais, de morar num exílio permanente sem distâncias, dentro de um só habitat coletivo. Causa vertigem só o pensar do pesadelo, a realização mental ligeiríssima do que é estar alijado de todos os menores componentes da rotina com-teto, do banho disponível, da mesa de refeição, do horário de refeição, do armário de roupas, do travesseiro, da chuva que não molha a cama; e causa um estranhamento tanto mais amargo concluir que os possuidores de seu próprio espaço isolado são, justamente, os únicos incluídos na coletividade, enquanto os que habitam espaços comunitários parecem ser automaticamente apartados numa bolha invisível.

Rosângela, dependente química, conta que está tomando medicação (provavelmente fornecida pelos Centros de Atenção Psicossocial que a acompanham) e indo aos Narcóticos Anônimos; quer ver os filhos, abraçar a família, pedir perdão, internar-se numa clínica – mas isso em geral não é informação que comova os que só perdoam aviões e helicópteros recheados de drogas, e falam com desprezo dos adictos pobres como "maconheiros", "noia", "cracudos". Rosângela, que ia saindo da loja somente com uma latinha de leite condensado e uma Coca gelada de 600ml, já estava até devolvendo os itens nas mãos da vendedora quando policiais a fizeram assustar-se e correr – mas isso tende a não justificá-la sob os olhos dos que, curiosamente, justificam com muita desenvoltura os donos de milhões em offshores que lucram enormidades IMORAIS com a desgraça de seu próprio país. Rosângela (pessoa como todas) "só estava com muita fome, queria muito comer um miojo, estava doida para tomar um leite condensado e um refrigerante gelado" – mas esses pequeninos, explicáveis desejos não adoçam o olhar dos que pagam pau para os que desejam NOSSAS empresas nacionais, NOSSOS recursos naturais, NOSSO dinheiro, NOSSAS florestas. A balancinha de humanidade tem uma propensão singular para pesar contra aqueles que ninguém gostaria de ser (embora não façam mal ou o façam com insignificância), e a favor daqueles que se temem mas invejam (ainda mesmo que devastem tudo no entorno). Não julgamos tão simplesmente nossos próximos, e sim nossos fantasmas.

É bem isto, admitamos: pessoas, talvez em triste maioria, empatizam radicalmente não com o que elas são ou parecem, mas com o que GOSTARIAM de ser – além de desempatizar, estremecendo, com o que temem tornar-se. Na tentativa de se recusarem ao horror de projetar-se numa situação muito mais aparentada de sua classe social, como a de precisar furtar alimentos ou buscar destroços deles em açougues, projetam-se em circunstâncias milhões de vezes mais impossíveis à sua realidade: acumular cifrões, colecionar objetos de luxo e ter sentimentos (?) de grande empresário, por exemplo. Rosângela, os habitantes de prédios oficialmente desocupados, os pedintes, os dependentes químicos que sufocam em sua dependência os reclames da pobreza – vivem universos de dor que também sufocamos sob fumos de superioridade moral, que criticamos para fingir uma distância que não existe, que fingimos não ver como crianças que fecham os olhos para não serem vistas. Deles, desses pequeninos do mundo, é que somos, entretanto, os irmãos mais chegados; a eles é que somos semelhantes; na realidade desses maiores esmagados é que podemos cair, enquanto não poderíamos "subir" nunca (Deus nos defenda, aliás) à dos maiores esmagadores. E num dia não muito demoroso, espero, havemos de nos ver unidos e reforçados por essa consciência luminosa.

Mas a gente ainda não sabe o que é isso.

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