quarta-feira, 13 de outubro de 2021

O que há num nome


Em 13 de outubro de 1992, Prince lançou aqueeeele álbum com um símbolo na capa que foi promovido a nome do artista. Não sei ao certo o que a criatura estava pensando; se era estratégia de marketing plana e simples, imagino tenha funcionado, já que era impossível os fãs não se irritarem com a impronunciabilidade e, consequentemente, não comentarem o assunto a rodo; mas se era muitíssimo da vontade e do coração que um som virasse um desenho, e que esse desenho finalmente captasse uma essência humana, negócio flopou de cara, porque Prince no máximo conseguiu se tornar aquele-cantor-anteriormente-conhecido-como-Prince. Não admira, nomes pedem fonemas – mesmo contando com gestos correspondentes em línguas de sinais, continuam a existir em simultâneo como um grupo de fonemas; nomes vibram o ar, vibram as cordas vocais, são estruturas chamáveis, gritáveis, sussurráveis, feitas para a citação e o vocativo, o amor e a bronca. Tem cabimento nenhum, ó Senhor, restringir à materialidade visual algo que é para estar em boca de Matilde, bombando na conhecidosfera.

Nomes são talhados, por exemplo, para a rima; sem o aspecto sonorável, como teríamos Vinicius de Moraes dizendo que "tem um cheirinho de murta/ E é suave como a pelúcia/ É acorde que nunca finda/ É coisa por demais linda/ Teu nome, Maria Lúcia..."? Cadê Castro Alves relatando que "a vez primeira que eu fitei Teresa,/ Como as plantas que arrasta a correnteza,/ A valsa nos levou nos giros seus..."? Nomes são talhados para os acrósticos que tias compõem no aniversário de sobrinhas; para títulos de romances, novelas, filmes; para canções apaixonadas de musicais ("Mariiiiiiia!/ I've just met a girl named Mariiiiia..."); para os alto-falantes de mercado/shopping que promovem reencontros de papais e mamães com crianças em pânico; para os alertas peremptórios e as zangas compridas ("Godofredo Henrique Matias de Albuquerque, pare com essa bagunça AGORA!"). Nomes carecem de ser repetidos, repetidos, repetidos mil vezes ao dia na mímica discreta dos lábios ou a pulmões pleníssimos, mascados com todas as entonações do amor e todo o entredentismo da raiva, toda a tristeza dilacerante da decepção e todos os cinquenta tons de orgulho. Assim não sendo, a individualidade fica como que suspensa: não se consegue levantar do papel a marca maior do eu, não se pode acordá-lo para a sangue-corrência efetivamente viva.

Sei, Julieta suspirou em sua paixão e sua inocência sobre "o que há num nome? A rosa teria o mesmo perfume, se fosse chamada por outro nome" – com o que, a jovem Capuleto me desculpe, não posso concordar; já se imaginou se um espírito de porco que estivesse em dia de ovo virado houvesse resolvido, em represália, chamar a rosa de (sei lá) esglerovídia? Pode-se conceber que Santa Teresinha viesse a ser conhecida como a Santinha das Esglerovídias? ou que uma existência feliz e regalada fosse um mar-de-esglerovídias? Pois então; impossível atribuir a mesma poesia, a mesma doçura, e nem cabe dizer que seria a mesma flor ou cor (quero ver pintar um quarto infantil em tom esglerovídia-bebê), justamente porque camadas e camadas de beleza simbólica moram no véu de significante que embrulha o significado. Não é – nunca é – só um nome; é a música da pronúncia, é o efeito que faz encaixado numa cena, numa serenata; são as rimas que permite, a usabilidade em poesia, a desdobrabilidade em metáforas e comparações e aliterações e refrões. É o ícone, o fetiche, o efeito coraçãnico, o tremelique de alegria ou pavor que dá n'alma. Capuletinha que mais uma vez me perdoe – mas nós, que amamos Romeu e Julieta, amaríamos da mesma forma Odilermino e Pafúncia? Asclépio e Cunegundes? Glicérisson e Nonigleuda? Não creio, não creio.

Nossos amores poéticos têm um mar de frescuras no (nome do) meio.

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