segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Incompreensões naturais


Acho bonitinho que Henri Bergson – filósofo francês nascido há 162 aninhos exatos – tenha dito que "a inteligência é caracterizada por uma incompreensão natural da vida". Sei que Bergson era um intuicionista, ou seja, muito mais propenso a valorizar a apreensão do real pela intuição do que pela intelectualidade que analisa e esquadrinha conceitos; assim sendo, é provável que na frase em questão (cujo contexto infelizmente ignoro) o autor estivesse DE FATO criticando a inteligência em sua forma racional, de fato apontando a coitada como sozinhamente incapaz de compreender o mundo. Embora eu concorde com o filósofo e acredite que somos, mesmo, muito mais atravessados pela intuição do que nos sentimos confortáveis em admitir, permitam-me encarar a fala do escritor como um elogio – ainda que descontextualizado e involuntário – à inteligência, digamos, tradicional; afinal, dizê-la naturalmente tapada diante da vida que vê não exclui considerá-la dotada de voz para fazer perguntas. Milhares, trilhardares, milquinquilhares de perguntas. Se a inteligência mencionada por Bergson é aquela analítica que, não entendendo friamente, ali empaca e ali fica batendo cabeça, sem dúvida não passa duma idiota; mas se a vemos como aquela que constantemente tropeça e constantemente se desvia, mudando de rumo para continuar tateando sem sossego, aí não há de se ofender das acusações de incompreensão: ela já se sabe assim e pretende seguir assim às apalpadelas, brincando de aprender com humildade sedenta.

Inteligências legítimas têm plena consciência do quanto são insuficientes. Estão perenemente pasmadas, reconhecedoras de que hipóteses formuladas num dia podem ser desmentidas no seguinte, e nem por isso se sentem desencorajadas da andança, pelo contrário; são apegadas ao caminhar, não necessariamente ao caminho, do qual se veem capazes de abrir mão sem resistência significativa. Dói, claro, desembarcar de mala e frasqueira dum trajeto já tão comodozinho, mas é o que é, paciência: inteligências que não envergonhariam Bergson são pacientes. Têm mais fascínio pela chance de um dia estarem certas do que receio de irem errando – e irem incorporando os erros ao diário de bordo. Têm mais ternura pelo que podem vir a saber do que vergonha de soltar-se do que achavam que sabiam. Fazem exames, fazem cálculos, porém vivem mente-abertas para serem igualmente traspassadas pela intuição que lampeja conhecimentos novos; basicamente não se negam ao novo, se ele justifica a confiança.

Não me parece que, para inteligências merecedoras do nome, haja ideias insubmetíveis ao novo – a não ser as que têm relação com direitos humanos, inquestionáveis, e com questões religiosas, que operam no âmbito da fé e são trabalhadas em outra instância; fora isso, cabeças inteligentes estão prontas para remoldagens sociais, científicas, artísticas, técnicas, históricas; abrem a boca de bom espanto ante evidências recém-colhidas e se deixam, molinhas, permear por elas, num processo ávido e interminável que faria Piaget orgulhoso. Não se trata de não ter os próprios pensamentos, trata-se de não mantê-los petrificados e, consequentemente, quebradiços, sujeitos à erosão violenta do mundo; trata-se de, conservando a raiz, curvar-se também ao vento. Inteligências não lutam contra provas, flexionam-se; não pretendem por cisma mudar o lado do sol, crescem estendendo-se para ele. Aprendem, buscam, tentam, adaptam-se, e bem cedo se convencem de não haver futuro numa individualidade excessiva que não sai de esvoaçar-se contra uma mesma, inexorável vidraça.

Os tempos passam e a inteligência não fica – e é por isso que também não passa.

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