sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Historina


No entanto, desconfio bem do que os algoritmos sabem sobre nós melhor que nós mesmos sabemos ou admitimos: somos viciados em historina.

A narrativa é nosso elemento natural, nossas asinhas de criaturas desaladas; não sendo especialmente fortes, especialmente resistentes, rápidos, ágeis ou mesmo charmosos dentro da irmandade animal, somos porém – ou exatamente por causa disso – buscadores crônicos de alternativas. O mundo externo nos intimida das maneiras mais várias, nossa programação não pode dar prioridade a existir para fora, e como consequência natural iceberguizou-nos para dentro. Vivemos do que contamos a nós: que para este ou aquele perrengue existe essa ou aquela gambiarra, que muita gente supera o que desejamos superar (ou precisa de nossa ajuda para superá-lo), que há lugares com os quais vale a pena engajar-nos em sonho, que podemos ser mais belos, mais saudáveis, mais prósperos, mais felizes. "Aaahnn, mas isso está fora." Não está, porque nunca o que é humano nos é estrangeiro – e mesmo o que a princípio não seria humano passa a ser, já que ao ver, por exemplo, um programa sobre um paraíso selvagem e intocado, só o que pensamos é em como seria tocá-lo; o ambiente pode afetar nosso corpo objetivo, mas a existência subjetiva, a que acontece toda dentro (e se expande tanto mais quanto mais vivência ficcional tem o serumaninho), essa é nosso grande ponto de vista, o grande resultado das narrações recíprocas e das autoexecutadas.

Claro que o algoritmo sabe – esse bandido; foi criado por gente especialista em gente. E então o canalha, traficante artificial de subjetividades, nos fornece em doses cavalares, hipopotâmicas, dinossáuricas a historina que é nosso vício desde o início; nosso bem, ocasionalmente nosso zen e muitíssimas vezes nosso mal. Há historina nos anúncios de roupa em que clicamos, porque clicamos apenas por nos imaginarmos (ou imaginarmos alguém) com elas. Há historina nas fotos de bebês devoravelmente bochechudos e nas de bichinhos insuportavelmente adoráveis que enchemos de "amei" e "ooooownnnnn", porque, nos ataques de fofice, pensamos em nós mesmos mordendo e amassando de amor as coisas tchuc-tchucas. Há historina nos memes de que gargalhamos, porque nos transportamos (querendo ou não) para realidades alternativas. Há historina nas imagens de pessoas gatas sobre as quais babamos – me poupem de dizer por quê. Há historina no acompanhar a CPI da covid, no comentar a novela das seis, no comentar a vida do ator da novela das seis, no mesa-redondear a partida de futebol por tooooodos os ângulos que foram ou poderiam ter sido, no meter o dedinho curioso em propagandas de pontos turísticos e restaurantes, no debater cinema, no falar sobre a adoção de animais, no destrinchar da política a fim de se compreender como chegamos a este ponto. Há historina no que fala de nós no presente, no passado ou no futuro; há nas memórias e nas projeções, nas convocações e nos desejos, nos tebetês e nos "um dia eu vou lá", nas fotos de relacionamento idealizado e nas declarações quase mudas de paixão assombrada, assombrosa. O algoritmo sabe. O algoritmo vê. Escuta. Acho até que telepatiza. Cobre-nos incessante, diuturnamente com o que lhe pedimos como condição para energizar à la Matrix os fiozões de sua teia:

Possibilidades na veia.

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