quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Versenkung


É aquilo de que eu adoraria ser dotada (além de 50 milhões de dólares, naturalmente). Versenkung é um termo alemão significante duma intensa capacidade de contemplação, de afundamento no que se faz, de imersão completa na atividade realizada; ou seja: um dom mui pouco acessível a borboleteadores. Eu tento, juro que tento – OK, não juro; nunca tentei tanto assim por não ter a justa paciência –, porém me confesso ralamente capacitada para largos e longos empregos de atenção, embora meu aparente sossego exterior engane bem os incautos e me coloque muuuuuuito aquém da fronteira de algum TDAH. Não tenho a atenção deficitária e organicamente incontrolável, de modo algum; mas tenho a bichinha rebelde e entediada crônica, brincona e escapante, pouco adulta e inimiga de levar a cabo tarefices que não lhe interessam.

"Ooooh, mas até aí qualquer um!" É verdade, especialmente agora que vivemos tempos dispersos e multimídios; note-se, entretanto, que sou apenas seminativa digital, só uso internet no computador e não tenho smartphone. Já era borboleteadora mental muito antes de ser modinha. Nunca me atrapalhou na escola, fui aluna de nove e dez, entanto não o fui por amor e sim por brio: sabia o que tinha de fazer, fazia, rindo ou chorando internamente quando os estereotipadores declaravam que eu gostava de estudar. Eu O-DI-A-VA estudar, já o disse mil vezes e insisto; nada me horrorizava mais do que engolir fórmulas e climas que detestava, e em geral eu passava a maior parte do tempo de teórico estudo daydreaming bobagens e lendo livros de meu gosto (graças aos céus que não vim a este planeta com a vocação da medicina, o que tornaria o período vestibulando ainda mais insuportável). No final saía o trabalho, saía a prova, porque TINHA DE sair – e aí também me aplicava inteira a que saísse o mais perfeitamente; não era educada a fazer de qualquer jeito –, mas só Deus sabe quanto me custava renunciar à permanente brincadeira mental em prol dum foco que jamais me veio espontâneo.

Porque algumas pessoas o têm, sim, espontâneo, quando se trata de coisas amadas e prazerosas: são capazes de mergulhar hoooooooras num game até zerá-lo, estudar hooooooooras de piano ou violino, treinar hooooooooras de balé ou ginástica artística sem que essa peleja se torne enfadonha. Pessoas meditam, quedam em êxtase religioso, maratonam séries parando só para ir ao banheiro, curtem legitimamente suas conversas, resolvem o que precisam resolver de burocrático e se livram. Quisera eu! não sei se um dia serei dessas, nem remotamente; sou capaz de pôr na geladeira, me arrastando, uma das duas garrafinhas d'água que levo para o trabalho – e pensar com tédio que aaaah, depois busco e ponho a outra. Dificilmente me deixo levar por papos a ponto de esquecer da vida; meu sentimento mais autêntico é o de estar ali tentando, em verdade, escapar deles, mesmo que adore com toda a alma o interlocutor. O máximo que consigo de devoção à série mais amada das amadas são dois episódios seguidos, cada um de até uma hora e OLHE LÁ. Em praticamente qualquer lugar e circunstância, estarei menos enternecida do que deveria pelo momento: os olhos sempre correndo em torno, analisando o ambiente, ajeitando a roupa, segurando a bolsa (a neurose em que o Rio de Janeiro nos cria deve ter muito a ver com isso), principalmente se houver filmagem; ah, como ODEIO filmagens – e às vezes fotos. Se já me é dureza desapegar de mim para garrar apego no instante, com câmera então todo traço de entrega, diversão e naturalidade vai para as solenes cucuias; meu orgulho de bicho do mato não relaxa, confesso, ante olhares alheios. Tenho plena consciência do problema, da solução não – porém acredito que só venho ou venha a atingir algo semelhante ao Versenkung nas situações de liberdade e privacidade mais absoluta.

"Você quer o impossível." Todos queremos, e ser impossível ou improvável não costuma nos impedir de querê-lo; viver como uma antiversenkungada renitente, aliás, já me choveu ocasiões de sonhar impossíveis, notadamente quando eu deveria estar fazendo coisas bastante prováveis e inclusive obrigatórias. "Mas como o impossível ajuda?" Não ajuda e atrapalha consideravelmente; sou desfocada, mas prática. "Então...?" Então não há saída – ou entrada em meu próprio centro – que me pouse com plenitude, e o mais próximo do jeito é (sempre foi) andar como aquela personagem involuntariamente flutuante do Orfanato da Srta. Peregrine que usa pesos incríveis nos sapatos para fincá-la ao chão.

(Claro: 50 milhões de dólares me permitiriam descalçar os sapatos eternamente nos trabalhos e burocracias. Rima não seria, mas era uma boa parte da solução.)

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