sábado, 30 de outubro de 2021

Aquilo que desespera


É um soco de consciência a fala do aniversariante de (redondinhos) 150 anos, Paul Valéry: "A definição de belo é fácil: é aquilo que desespera".

Certo, definitivamente nem tudo que desespera é belo – está aí nosso indigníssimo chefe de Estado nos enlouquecendo 27 horas por dia e não me deixando mentir –, mas o oposto é, de fato, o puro suco da verdade; tudo que é legitimamente belo nos leva a um desespero delicioso. Ver alguém que encarna o auge da boniteza, por exemplo (ao menos segundo nossos apetites estéticos), nos empurra para uma espécie de fome canibal; queremos enlouquecer de tanto olhar a criatura, morder-lhe os traços, comer-lhe as bochechas, engolir-lhe as covinhas, ouriçar-lhe os cabelos, sentir com as costas da mão se o rosto é macio como promete. Não me refiro a atração sexual, absolutamente – apenas, e de modo específico, aos encantamentos de forma que nos acometem, às paixões que temos por aparências que parecem um atropelo sensorial, de tão perfeitas. Vocês sentem? eu sim, sem nenhum atrelamento de gênero ou impulso romântico; sinto a beleza e a fofura humanas (fofura é uma categoria de beleza, até me convencerem do contrário) como algo inebriante em si, bebível, comestível, e portanto compreendo quase perfeitamente o frisson de um pintor, escultor, fotógrafo ao tentar capturar uma exatidão que o apaixona.

Paisagens, roupas, animais, casas, quadros: somos igualmente capazes de nos estontear de alumbramento à só visão dum contexto ou dum objeto suficientemente justo para as circunstâncias. E alumbrar-se é jeito de entrar em desespero, sem dúvida; alumbrar-se implica quedar perplexo ante a coisa e não querer ir embora da coisa, ou não se conformar que a coisa vá embora por si – aflição que contraria decisivamente a necessidade de o trânsito andar, de o expediente evoluir, de o passeio no shopping chegar a bom termo, de o ônibus da excursão partir, de o avião decolar, de a festa transcorrer. O tempo urge, ó dor; o tempo urge mesmo quando há tempo, já que a cronologia psicológica nem sempre se sacia fácil; o tempo é a turma do deixa-disso nos empurrando para longe da beleza perecível, breve, incabível na agenda. Para tão longo amor, tão curta a vida.

Aproveitando Camões, aliás: e o belo literário? Aaaah, esse nos desespera de arrepios com que substituímos, na visão interna, a paisagem que não vemos pelas letras que esperam fazê-la vista. Se a literatura não conta com os recursos da luz, da cor, da curva, em compensação recomenda-se às sinapses por trás dos olhos, recita-se como feitiço, como mantra, cantarola e sussurra; por dentro – direto para dentro. Não há como evitar um calafrio de pegada na nuca ao ler "Tuba de alto clangor, lira singela/ Que tens o trom e o silvo da procela"; ou "Tem sangue eterno a asa ritmada"; ou "E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas"; é também uma modalidade de exasperação, essa de sentir o papel murmurando termos tão certos e tão encantatórios direto no ouvido d'alma, quando menos se está preparado para o confronto e quando se costuma, inclusive, estar sozinho, no ápice da vulnerabilidade. O belo literário é o Fantasma da Ópera abraçando pela cintura e cantando "Point of no return" na base do pescoço: chance nenhuma de não se deixar levar à rendição.

Belezas desesperam por serem exatamente o ponto de onde não há retorno – por serem a lua da maré em que nosso sossego transborda.

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