quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Antivazio


Acredito que a gente só possa escrever, compor ou gerar qualquer possibilidade de arte, e até de não arte, quando cheio. Ou seja: virtualmente sempre.

Sim, produzimos também na presença do vazio, mas somente do vazio que é verdadeiramente a incerteza ou a languidez que não sabe o que fazer de si: sensação falsamente oca, na realidade apenas preguiçosa de escolha, exausta de lida, sonolenta de indecisão; com um upzinho de estímulo, açúcar, travesseiro, leitura, filme, cafeína, com um passeio de ver planta ou gente, com uns versos capturantes, com um programa de debates, com uma polêmica que faça girarem os radares – o pseudovazio emprenha e se evola. Não se evola o vazio autêntico, patológico, pesado demais para ventos e argumentos: o da depressão, geralmente; com este não há persuadir, há tratar. Existe também o intenso nada do luto fechado, que usualmente só amanhece com o tempo, e se o tempo não dá conta foi porque a tristeza garrou chumbo e evoluiu para a alternativa anterior. Se for tédio ainda criança, ligeiro, varre-se o danado após alguma ou muita insistência; o que não se pode deixar (qualquer que seja a origem) é que a oquidão improdutiva finque raízes eternas.

Por "produtivas" não se entenda "geradoras de lucro", please; não me passo para lógicas capitalistas que abomino. Digo apenas que autorizar indefinidamente a escalada do vazio n'alma é ser cúmplice duma nossa desertificação progressiva. Não nascemos nem para o pasmo que não vira o ócio fértil, nem muito menos para a dor que só semeia sal por se ter feito árida de vida; nascemos para que o terreno, mesmo com seus intervalos e invernos, brote em verde e flor e polpa, a seu tempo; para que ele gere o que pode gerar, mas que se abra em viço próprio e não se isole – se ecossistemize. Que se danem de verde e amarelo os dólares, os mercados, as Bolsas, ninguém (relevante para a harmonia das nações) liga; que se salvem, porém, nossas produções recíprocas, nossos talentos que são mútuas estendidas de mão, nossas capacidades de encher mundos específicos, suprir necessidades amigas, alumiar existências no entorno. O que parece vazio é também cheiume de si, de dotes intransferíveis, habilidades em estado de natureza – e, assim sendo, toda esterilidade de ação individual se torna uma perda coletiva; toda vontade que se extingue configura um braço a menos na obra.

E gente nunca sobra.

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