sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Fora do tempo


Amo profundamente que Doris Lessing (escritora britânica nobelizada, nascida no Curdistão iraniano em 22 de outubro de 1919) tenha dito a respeito da leitura: "Há apenas uma maneira de ler, que é pesquisar em bibliotecas e livrarias, pegando livros que te atraem [...], largando-os quando eles te aborrecem [...] – e nunca, nunca lendo nada porque você sente que deveria, ou porque faz parte de uma tendência ou um movimento. Lembre-se de que os livros que te aborrecem quando você tem vinte ou trinta anos abrem-lhe portas quando você tem quarenta ou cinquenta – e vice-versa. Não leia um livro fora do tempo certo para você" (a tradução, aqui, foi libérrima, e proposital a bagunça de pronomes por motivos de naturalidade linguística). Apenas genial: não há que ler um livro fora de seu tempo certo. Essas gracinhas têm almas próprias como os amores, com a sólida diferença de livros não se magoarem ao romper-se o vínculo, e de a oscilação da maturidade morar exclusivamente do nosso lado.

Sou prova; inventei de ler Dom Casmurro com parcos 12 ou 13 anos e até hoje me assombra impressão semelhante à daquelas coisas que ninguém sabe se reais ou se delírios coletivos. Não foi um romance, foi uma névoa; apaixonei-me francamente pela descrição dos olhos de Capitu, isso lembro com firmeza (aliás foi influência decisiva em redações), porém não lembro mais do que isso – um não mais do que isso que não é de agora, corridas décadas, e sim daquele mesmo ano ou do posterior. Eu lia muito, muito e sempre, tinha sem dúvida a maturidade leitora bem servida para a idade, mas o que não podia ter – nem deveria, de qualquer forma – era o amadurecimento de vida e devido para esquadrinhar as percepções de Bentinho de igual para igual. Como eu penetraria em todas as intenções dum narrador adulto ressentido, ardiloso, covarde, boy lixo com fartos interesses de não se deixar perceber boy lixo, se minha bagagem era uma psiquê menina iniciando uma adolescência pré-internet, desconhecedora de estudos sobre o livro e de discussões que ainda mal se faziam a respeito da masculinidade frágil e tóxica? Sem instrumentos; sem condições. Anyway, não digo como Doris Lessing que o clássico não devesse de todo ser lido naquele momento: foi um marco, um portal, um empurrão porta afora da literatura infantojuvenil, em especial por ter ocorrido espontâneo e sem determinações externas. Apesar dos naturais desajustes de iniciante, fico feliz que tenha sido com o Machado queridão minha primeira vez na literatura adulta.

Dom Casmurro se revelou um despreparo mais aproveitante; outra machadice precoce não teve o mesmo efeito e virou uma lembrança sextilhões de vezes mais nebulosa. Também não li O alienista (em idade próxima à da experiência com o glorioso Doncas) porque me pediram; li porque estava de cama com alguma virose ou assemelhanças, o minilivrinho tinha vindo de brinde numa compra qualquer e ficou no quarto dando sopa. Peguei a novelita, parti pro ataque, entendi um total de menos três bulhufas. OK, recorro a atenuantes: além dos anos ainda frágeis, havia a doença botando o entendimento indisposto e havia o fato de o enredo não conter amor, ausência que constantemente me desinteressa (sim, no presente); mui arriscada estava de ir convalescer num quartinho da Casa Verde, se o doutor Bacamarte me pilhasse tentando me autoimpor a obra nesse contexto deplorável. E meus amados, idolatrados poetas românticos? bem o oposto: se na adolescência já rija e verã eu os carregava para cima, para baixo, deglutindo e decorando e copiando e reproduzindo versos – hoje os amo com o mesmo amor de velha amiga e a mesma veneração aos gênios, mas sem quase nenhuma paciência para lê-los. Por quê? Em grande parte porque não posso citá-los aproximadamente nunca, já que os muitos suspiros e estufamentos de coração tornam dificultosa a extração filosófica. Que se há de fazer; meu lado poético desverdeou, ficou mais prático, mais cerebral, faminto de pérolas resumíveis e de belezas limpas de interjeições.

Temos fases (como a lua, diria Cecília) – fases de roupa, série, novela, música, paladar; fases para umas verdades, umas conversas e não outras, para umas companhias e não outras, para uns trabalhos e não outros. Alguma dúvida de que leituras iriam se acomodar tal-qualmente em nossas demandas intransferíveis? Falo, claro, dos que JÁ SÃO leitores e carecem de conhecer e respeitar as próprias marés; com os neonavegantes o leme gira diferente, existem persuasões necessárias a qualquer educação que principia. Marinheiro velho já sabe, saca, percebe, sente e escolhe, tem as manhas, tem nada que ir na onda de modinha que não apetece.

Pra não apetecer precisa, no mínimo, valer (uma) nota.

Um comentário:

Camila disse...

Que interessante texto. Eu fui muito uma leitora fora do tempo. Isso não me incomodou, me fez não ter medo de ler alguns autores depois, porque, de algum jeito, já tinha lido,mas só considero leitura mesmo a releitura, aí é uma delícia ver quanta coisa eu não tinha maturidade pra perceber. Não falo do Machado porque esse eu li pro vestibular, já era leitora e tal, adorei a gostoria do Brás Cubas (até hj gosto, tenho trechos na memória), gostei menos de Dom Casmurro (me julgue), mas lendo seu texto, pensava mesmo no Lima Barreto, que li muito menina mesmo, 12 anos, nem sabia quem era, peguei Clara dos Anjos na Biblioteca porque achei o título bonito e a capa TB, li e ficou em mim, mas eu só fui realizar que Clara dos Anjos SOU EU,SOMOS NOS, recentemente... Me ver naquela história só foi possível depois que eu fiz a viagem do Isaías Caminha até a cidade e me descobri negra. Eu escrevi um texto sobre Clara dos Anjos, deve ser publicado ano que vem, e o tempo todo foi muito emocionante a revelação, reler "no tempo certo" foi importante, mas ler lá no comecinho TB foi, como se esse livro tão fundamental, estivesse lá na minha história de leitora o tempo todo... Lado a lado do Rosa, claro...enfim, falei demais.