quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Encher os dias de não querer mais deles


Não sei (ninguém sabe) como podia caber tanta beleza num Ricardo Reis que disse: "Quero ignorado, e calmo/ Por ignorado, e próprio/ Por calmo, encher meus dias/ De não querer mais deles.// Aos que a riqueza toca/ O ouro irrita a pele./ Aos que a fama bafeja/ Embacia-se a vida.// Aos que a felicidade/ É sol, virá a noite./ Mas ao que nada 'spera/ Tudo que vem é grato".

Discordo de que se deva encher os dias exclusivamente de não querer mais deles; é noção conformista em excesso para quem – ao menos no que envolve o coletivo – tem gostos revolucionários, e se assemelha perigosamente demais àquela velhíssima ladainha do "você é pobre por vontade de Deus". Ninguém é pobre por vontade de Deus, é pobre porque não faltam ultrarricos desequilibrando com requintes a balança; qualquer parecença com essa manipulação medieval para manter as gentes resignadas me dá horrores e engulhos. Mas entendo que não é desse tipo de aceitação pasmada que fala o poeta com tanta lindeza: não é do abraço passivo à própria sorte quando ainda pesam carências grossas, e sim do abraço na sorte que não carece de inventar carências. Apela ao nosso bom senso o eu lírico ricardiano, não desrecomendando que se deseje – mas que se fuja, com força, de forjar o desejo inútil.

"[...] ao que nada 'spera/ Tudo que vem é grato" são versos de desabonar ganâncias, sem com isso desapoiar lutas. Que haja sonhos, que os haja a rodo; esperanças, sempre e muitas; porém exageros de querência, sobras, extravagâncias não. Delírios, não. "Embacia-se a vida" dos eternos ambiciosos pela impossibilidade de não se irritarem com o próprio enervamento, atinjam ou não atinjam a meta estipulada: se inalcançada, ela aperta a glote de seu portador com frustrações, e se alcançada ela o sufoca lentamente de necessidades novas. Trata-se duma escravidão de Midas – uma vontade que por curiosidade não sossega, e que por vício, por natureza, não se interrompe; com ou sem pretensão, acaba reduzindo o entorno do desejante a recompensas duras demais para saciá-lo a fundo. Qual a saída? Uma única: se não há focinheira que chegue para as ambições que se cachoeiram, negócio é enjaular o rio antes que se precipite. Negócio é deter o capricho antes que se godzille, enquanto ainda é frágil, ainda é ovo, ainda é pouco; cortar alimento ao projeto de monstro enquanto não vira avalanche que mal escolhe o que devora.

Ter saúde para possuir inclui deixar ir embora.

Nenhum comentário: