domingo, 10 de outubro de 2021

Arte do absurdo


"A poesia não pode ser lógica", dizia José Luis Hidalgo, poeta e pintor espanhol que teria hoje completado 102 anos; "a raiz mesma da poesia reside precisamente no absurdo".

É fato. Romances e demais obras de ficção, em quaisquer mídias, estão atados à verossimilhança – à verossimilhança interna, sublinhe-se, não ao realismo documental; mas dentro em si, anyway, as ficções têm por princípio o compromisso de fazer sentido, e aliás todo desviozinho é imediatamente esquadrinhado entre seus leitores ou espectadores, que não perdoam nem podem perdoar escorregões de roteiro. Melodias seguem a própria lógica partituresca, são redondíssimas em suas matemáticas. Pinturas, querendo, conseguem parecer fotografias de tão casadas com o real, tanto como esculturas podem acontecer de sair fiéis a ponto de alguém lhes descer um catiripapo na cabeça dizendo: parla!...

Poesia não; não é capaz de se colar no andamento da realidade ainda que queira, ainda que seja tirada de uma notícia de jornal, até porque nessa circunstância a notícia de jornal caminhará também no absurdo. Mesmo em poemas aparentemente descritivos ou narrativos, que iludem a gente com seu ar circunspecto de denotação, olhem-se os olhos da fera de perto, atentamente: Mr. Hyde está ali manifestado na pausa que não é a de nosso natural, na inversão esdrúxula, às vezes no simples fato de se sacrificar a clareza à rima (ei, não é uma crítica: AMO rimas). Poemas suspiram exclamações inusitadas, serram sílabas para encaixar-se na métrica, vão buscar metáforas sabe-se lá em que criadouro de aproximações insólitas, repetem-se – quando cismam – à exaustão, debruçam-se sobre o detalhe do detalhe do detalhe se lhes apraz, "esquecendo" toda a guerra do entorno. Poemas não precisam concluir pensamento; se muito lhes agradar, desmentem no verso final tudo que vinham de construir; brincam com a aliteração pela brincadeira em si mesma, ou jogam no ar um amontoado de onomatopeias, caracteres alienígenas, termos randômicos sorteados no dicionário; divertem-se sem necessariamente um propósito redondo; assumem toda, absolutamente TODA forma que o poeta estiver na veneta de lhes dar. São crianças – vez ou outra vestidas com o terno sisudo do avô, porém crianças; criam seus próprios brinquedos e bagunças seja no quintal, no sítio, no terreno baldio, na sala do apê, no colégio interno. Tal-qualmente crianças, poemas podem até engravatar-se e recitar a tabuada por fora, mas são dadaístas, rebeldes, iconoclastas, delirantes, fantasiantes por dentro, em seu núcleo de lava absurda perenemente pronto para derramar-se aos borbotões.

Poesia é o vulcão das artes: nem toda a neve formal que venha a lhe cobrir o topo impede o magma das veias de estar. E jorrar.

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