quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Limites


Acho engraçado e tocante – ainda mais isto que aquilo – quando o querido João Vicente conta, no Papo de segunda, que em plena infância/adolescência se sentia desconcertado ao ver que não lhe proibiam coisas; tão desconcertado que, na direção exatamente oposta ao costume dos pequenos, chegava a interromper longas ligações telefônicas ou deixar de ir a algum lugar INVENTANDO que a mãe "estava em cima" e não permitira. Claro, não é que o lindo fosse nenhum largado na vida, longe disso (e pelo homem que se tornou podemos constatar que sempre foi muito amado), porém certamente se ressentia um tanto de uma gestão que talvez se mostrasse "democrática" demais para suas necessidades e inseguranças; por sinal, podemos dizer que é a praxe: filhos, filhas ADORAM limites, ainda que em geral de maneira bem mais inconfessa. Adoram limites mui igualmente ao modo como gatinhos adoram caixas – com a mesma gana de proteção e abraço, a mesma carência dum certo aperto; e se a proverbial rebeldia dos gatos necessita duns espaços fechados para se acomodar seguramente em casa, que dirá a dos humaninhos, que ao contrário dos irmãos felinos não nasceram com o instinto poderoso do que devem, podem, são.

É a lógica do aconchego. Se alguém, sob pretexto de tornar a casa mais aconchegante, cobre-lhe a área INTEIRA de colchões e almofadas e futons, acaba criando um espaço que é uma maçada, por não permitir brincadeiras e correrias que pedem chão liso, por não sustentar direito os pesadumes da vida prática – armários e mesas, por exemplo –, por ser imolhável no banheiro e na cozinha, e por isso mesmo inutilizável ou (o que é mil nojentas vezes pior) um imenso criadouro de mofos mil. Para ser útil, uma vivência não pode ser toda acolchoada; o que começa até divertido perde a diversão em uma semana para os mais renitentes, e em no máximo um dia para os seres típicos. É preciso delimitar o aconchego. É preciso que os colchões, as almofadas, os futons fiquem restritos a cantinhos específicos de estar enrolado e quente e macio, e mesmo assim com superfícies duras o suficiente no entorno para apoiar copos, xícaras, livros, notebooks. Aconchegar é isto: não disponibilizar colos infinitos em todos os cantos, já que assim se transformam em nenhuns, e sim conter o protegido num colo demarcadamente protetor, que só é protetor porque contém.

Vimos ao mundo com um manual de instruções bem ridículo, com pouquíssimas funções programadas: mamar, chorar, balbuciar, alcançar, mais uma meia dúzia de ações. Mas são instintos que não nos servem por muito tempo nem são substituídos automaticamente por atualizações do sistema; é o preço da racionalidade – ter de aprender, ou antes ter de ser ensinado a. Famílias, os pais sobretudo, são nossos "instintos terceirizados"; elas, eles nos socializam, fazem do balbucio uma fala, colocam o egoísmo bruto sob polimento, lapidam a percepção do eu em autoestima saudável, garantem que não nos alimentaremos do que não é alimentício, que não invadiremos a área de outros eus, que estaremos abrigados de frio ou calor (especialmente do frio: levar um casaquinho é obrigatório), que seremos imunizados contra doenças evitáveis, que não viraremos a noite assistindo a porcarias se na manhã seguinte temos de ir a diferentes espaços de aprendizado e socialização. Cuidadores são o abraço essencial – o afeto que também é restrição; se não apertam, abraços não transmitem calor e segurança, e se apertam excessivamente viram violência, cortam a circulação e o ar.

Amor aos que cuidam: também precisam ser cuidados quanto aos limites de limitar.

Nenhum comentário: