sábado, 9 de outubro de 2021

Jardim do Éden

O que acho engraçado na obra do artista britânico Briton Rivière (1840-1920) é que sempre, sempre havia um jeitinho de enfiar imagens de animais na cena retratada – principalmente cães amorosos e fiéis, lindos, lindos. Uma das pouquíssimas pinturas em que isso não sucede é a acima reproduzida, Garden of Eden, que curiosamente (o próprio nome o sugere) seria uma das mais apetecíveis para bichinhos mil, de mil adorabilidades e perfeições. Há animais pressupostos sim, prováveis cavalos – ou um provável cavalo – em leve silhuetamento além da grade, no meio do fog que presumo ser londrino; mas de maneira tão incidental, tão oblíqua, que nem convém trazermos o(s) figurante(s) aos créditos. Gosto de imaginar que Rivière se divertiu burlando todas as expectativas dos conhecedores de seu portfólio e, de quebra, suspirou muito de ternura lá-consiga ao pintar essa que é certamente uma das mais tocantes odes ao amor, verbal e não verbalmente eloquentíssima.

Que se espera do Jardim do Éden? Viço, verdura, cores, flores, bichos em profusão vivendo como mostram aqueles folhetos religiosos que distribuem na rua: leões lambendo ovelhinhas, jacarés servindo de iate a patinhos, gaviões dando carona a ratinhos de parapente, só a mais absoluta alegria unicórnica. Além de um Adão e uma Eva, claro, fazendo as honras da melhor das casas. Pois nosso Briton meteu um – sabe do que mais? vou desfocar neste meu querido Éden tudo, tudo que é secundário àqueles que andam mergulhados no paraíso de amar com reciprocidade; que veem eles, que sabem eles? Por acaso lhes importa o ser dia ou o ser noite, verão ou inverno, tepidez ou congelamento, colorido de animação Disney (não creio que Briton tenha pensado essa parte da Disney) ou paleta de funeral? É nada; basta-lhes amarem-se, amarem-se de tal forma que nem a doçura incondicional dos pets fiéis precise estar em primeiro plano. Meu Éden vai ser a essência da essência: um Adão, uma Eva e – para não haver dúvida, é só olhar nos olhos da Eva em questão – a presença divina.

E pois as árvores estão todas nuas, sem o menor pedacinho de primavera, sem um fruto sequer de outono (tanto melhor; nenhum que possa ser expropriado e oferecido pela serpente); a neblina tudo cobre, tudo acinzenta, é quase tangível o frio desagradável e úmido; o chão está molhado, o dia é de guarda-chuva, ou pior: o chão é de escorregar rude e o dia é de guarda-chuva molhado, incômodo de portar, desconcertante de todos os movimentos. As roupas são de cotidiano, sóbrias até o cúmulo, escuras, sem adornos, sem detalhes alguns que deem à cena qualquer coisa de festa. Mas quem liga? quem liga?? O casal paradisíaco é que não; embora não possamos testemunhar o olhar do Adão para sua Eva, a completa unidade emocional de ambos faz supor que, por espelhamento, é idêntico ao da Eva para seu Adão – e vejam se existe imersão mais enamorada, encantamento mais vivo do que nessas pupilas enroladas nas dele! São dois e apenas um; Eva segura com as duas mãos a mão do companheiro, numa entrega e proteção que ele, por sua vez, mimetiza segurando com a outra mão os dois guarda-chuvas. Ali, muito ali e muito nesse momento, deixam o mundo inteiro e são uma só carne, no toró e na bonança.

Que o amor reconstrói o Éden à sua semelhança.

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