sábado, 2 de outubro de 2021

Alô, doçura


Apesar de alguns tropeços históricos, tenho adorado a novela Nos tempos do imperador, e agora com reiterado motivo: a (ainda virtual) formação do casal Nelores. Ele, Nélio (João Pedro Zappa), já é há algum tempo meu personagem favorito; tímido, franzino, tão moderado e discreto quanto sua família é espalhafatosa e cafona, rejeitado pela mãe – que só tem olhos para o caçula –, o assessor do vilão Tonico Rocha facilmente passaria como uma daquelas figuras secundárias feitas para serem escada dos alfa com quem contracenam. Ela, Dolores (Daphne Bozaski), a irmãzinha "sombra" da protagonista, tão passiva e acanhada e medrosa quanto a primogênita é intrépida e fogo-ventuda, também tinha tudo para ser um chuchu novelesco, a sem-salzita de que ninguém se lembra. Muitomente ao contrário, entretanto, a boa mão dos roteiristas e a perícia dos atores vêm transformando os dois satélites numa conjunção planetária de fofura.

Quem vem acompanhando a trama desde o início percebeu que a união das pessoas de Tonico era pedra suavemente cantada, o que só torna o (re)encontro mais adorável. Sem alarde nenhunzinho, anunciou-se uma possível simpatia já nos tempos de Dolores criança (interpretada pela ótima Júlia Freitas, que estraçalhou o coração do público com sua tristeza resignada em falas como "Pilar ficou com toda a coragem da família" e "nada nunca dá certo para mim"); embora em nenhum momento tenha demonstrado dar alguma preferência ou atenção especial à filhinha do coronel Eudoro – felizmente, aliás, já que qualquer movimento nesse sentido soaria estranho e comprometeria a delicadeza dos personagens –, Nélio sempre foi extremamente gentil em suas poucas interações com a menina, como quando lhe prometeu transmitir um recado a Pilar caso a encontrasse, e quando se comoveu com o fato de apenas a pequena Dolores, entre os seus, manifestar um pesar sincero pela morte da ama de D. Pedro II. Ademais, é visível que os satélites do vilãozão foram criados para almas irmãs, tanto pela proximidade de suas condições familiares – ambos são os "filhos que nada podem", os carentes para quem sobrou a pior missão – quanto pela própria dependência com relação a uma criatura grossa, insensível, narcisista, inescrupulosa e autocentrada, incapaz de toda demonstração de afeto legítimo.

A construção de João Pedro Zappa é particularmente fabulosa, uma vez que o mesmo ator encarou as duas fases e precisou achar maneira de ir deixando entrever sua doçura logo nos primeiros momentos de cumplicidade com as escroquices do amigo e patrão. O olhar afável e hesitante do ator agiu poderosamente neste sentido, e acabou de coroar a obra no capítulo de hoje, em que o público teve a chance de se derreter com o exato instante do apaixonamento de Nélio; só um psicopata diplomado não arriaria os quatro pneus diante da ternura na qual a expressão do padrinho de Tonico envolveu a noiva (mil parabéns à direção, por sinal: QUE cena linda, lírica, precisa, fofurilda). Além dos olhos irresolutos e doces do jovem Pindaíba, variados toques aqui e ali já o vêm preparando para tornar-se o heroizito romântico da trama, como o hábito do rapaz de secar-se permanentemente com um lencinho para evidenciar seu desconforto com tudo de que o chefe e a família o levam a participar, o constrangimento com as esbórnias de Tonico, a empatia voltada para o grupo de negros abolicionistas que o obrigaram a publicar um manifesto no jornal. Uma das dicas mais felizes a respeito da sensibilidade de Nélio foi o brevíssimo trecho em que pudemos constatar que o moço, durante o expediente no periódico nojento do patrão, lê poesia – algo não mencionado, simplesmente sugerido aos olhos mais atentos: novas palmas para a direção.

Claro, Nélio já começou a novela como adulto e poderia perfeitamente, tal qual a "cunhada" Pilar – aliás com muitíssimo mais facilidade, por ser um homem branco do século XIX –, ter-se rebelado há anos contra um sistema em que obviamente não se encaixa. Não nego e não passo pano. Permitam-me, no entanto, a fraqueza que não consigo deixar de ter pelos que vivem na sombra, pelos semitortos e de alguma forma excluídos; é tarde, já me apeguei ao bichinho e só posso torcer loucamente para que Nelores encha de açúcar o horário das seis, de preferência com o mancebo dando à donzela a prova de amor inenarrável de alfabetizá-la (sim: enquanto a irmã já é médica, a pobre da caçula mal sabe juntar algumas letras, e disse às princesas que "só vê as figuras" dos livros – para nossa total liquefação). Por favor, autores, que meu querido Pindaibinha vire professor e abolicionista, nunca vos pedi nada.

Que, afinal, usar óculos e barbinha malfeita ele já usa. Se melhorar eu explodo.

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