terça-feira, 9 de junho de 2020

Piratas

Coração Risco Amor Ataque - Imagens grátis no Pixabay

Amo o Roupa Nova desde criancinha, por influência da irmã e das novelas – que me enfiaram esse amor na vida quer eu quisesse, quer não. Quem cresceu nos anos oitenta e noventa tomou surra de Roupa Nova em seu estado puro; não havia uma trilhazinha nacional em que os seis rapazes não estivessem metidos (chegando ao ápice de duas canções na mesma trama das 18h, a bonitinha Felicidade). Uma de minhas roupanovices favoritas é "Coração pirata", que vibrou em Rainha da sucata como tema da protagonista Maria do Carmo. A melodia é irresistível, mas a letra (propositalmente) nada tem de encantadora; é, ao contrário, um tão grande libelo da arrogância e da meritocracia que, pelo exagero, sublinha o ridículo do discurso. Ficamos entre impossibilidades iguais de não amar a música e de simpatizar minimamente com a bisca do eu lírico.

Há sobretudo um verso dessa voz patife, que se considera sempre com a razão, capaz de trazer escândalo aos mais empedernidos: "E nunca me dou". Nem era necessário o biltre garantir que não confessa um erro, ou que manda no sucesso sem jamais pedir-lhe qualquer coisa, para que o desprezássemos solenemente; ele nunca se dá, eis tudo, I rest my case. O que seria razoável esperar de alguém inabilitado para algo tão básico em termos humanos – e inabilitado não porque um trauma horrível o impediu de confiar, e sim porque a confiança e a entrega lhe parecem, por princípio, uma fraqueza? Nada pode ser cultivado com o menor triunfo em terra que não abra qualquer espaço para raízes. Nada medra, nada cresce, nada se fixa em torno de almas nuas de oásis, inteiramente pavimentadas de autodefesa bruta, de egoísmo da gema, impermeáveis, inatingíveis, inchoráveis, recobertas de raivas maciças sem áreas macias. 

Quem nunca se dá não consegue se instalar em relação amorosa saudável, já que, por definição, faltam a parte do "saudável" e a parte do "amorosa". Quem nunca se dá pode até obter que os outros se deem (e normalmente o obtém, porque nada como a falta de empatia para descer à sedução mais estratégica, mais baixa), mas nenhum tipo de sociedade dura se um dos parceiros investe capital e esforço – e o outro, desculpas. Lábias e justificativas de peitos ocos têm validade menor que iogurte, fedem cedo, fazem água, estufam os limites, e mesmo que o gosto pareça estável não há como não saber fortemente que ali anda veneno. Os que se dão (até em excesso) podem estar em urgência solitária, porém urgências são agudas e não crônicas, inteligências e amores-próprios ficam em suspenso sem ficarem suspensos, e um dia a Grande Ficha desaba. Junto de quem nunca se dá, está alguém que não aceitará eternamente não receber.

Quem nunca se dá pode organicamente fecundar, conceber e parir, mas de modo algum será pai ou mãe no pleno teor do nome: trará o brinquedo sem trazer o brincar, será o sustento sem o colo, o bolo de aniversário sem o sopro conjunto, a bronca sem o olhar, o quarto de designer sem o acampamento na sala ou a produção coletiva de pizza na cozinha. Quem nunca se dá pode dedicar-se até com ferocidade excessiva ao trabalho, mas não perguntará a suas ações quantos mundos individuais elas tornarão melhores. Quem nunca se dá pode ser ótimo piadista de festa, excelente animador de feijoada, padrinho generoso de casamento, parceiro ideal de pôquer, mas não há de ser amigo – aquele de vida e morte, disponível no meio do caos, autêntico na atenção, aberto às confissões mais estrambóticas. Quem nunca se dá é coração pirata, sim, e não apenas no sentido corsário que toma tudo pela frente; é pirata mui especialmente pela qualidade discutível da alma fake, da imitação barata de gente, do pacote vistosinho que embala um espírito de bugiganga. 

Por trás de toda avareza emocional há dois monstros: o infeliz que foi presa só de afetos adulterados e sua consequente evolução em predador.

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