quarta-feira, 3 de junho de 2020

Rosas do agora

Imagem gratuita: arte-final, eletricidade, fantasia, feito à mão ...

Nosso planeta é um bagulho doido, mas se justificaria só pelo fato de Fernando Pessoa – oopsie, Ricardo Reis – ter nascido e escrito em alguma tarde: "A luz para elas [as rosas] é eterna, porque/ Nascem nascido já o sol, e acabam/ Antes que Apolo deixe/ O seu curso visível". Pronto, está perdoada a Terra e toda a bagunça que nos entra pela garganta: houve poesia, houve o rei dos Ricardos, e nada mais nos cabe de melhor do que imitar as rosas e entender que demos sorte. Assim como as flores de Pessoa, devemos fazer o coração praticar a certeza de que nascemos no mais adequado momento possível, sempre entre duas escuridões. Vivemos no tempo certo, que nos esperava; que, desde as primeiras faiscazinhas rasgantes do nada, precisava de nós. 

Eu, por exemplo, amei sempre o século XIX por linguagem e romantismos, mas estremeço de inadequação ao me imaginar nele: ali não caberia, não pertenço. Gosto que ele tenha existido para receber toda a lindeza de sua literatura, porém gosto mais ainda de eu não ter existido nele, para não me inserir em seus horrores. "Ah, você acharia normal", dizem os incrédulos de nossa capacidade de ter alma para além dos contextos. Escravidão? Primeiras teorias eugenistas? Casamentos de conveniência? Um milhão de proibições à infeliz que caiu na asneira de nascer mulher? Não sou capaz de me imaginar compactuando, normalizando, observando com a candura dos que pertencem a seu tempo sem desejar fazê-lo pertencente a eles. "Ah, você não teria com o que comparar; não saberia." Sim, eu saberia. Muita gente sabia, muita gente sempre sabe, do contrário ainda acenderíamos fogo com pedrinhas – se é que acenderíamos algum. Tanto nós sabemos que conseguimos, hoje, ver aquilo que ainda não se encaixa, e se necessário esperneamos até o sangue para que venha a encaixar-se em algum futuro. Sempre alguém vê, em todas as épocas; o que temos de humano pode adivinhar mais do que a limitação de nossa própria era; mas amo o fato de termos tão menos limitações na visão, o fato de universalmente os preconceitos serem o restolho da exceção e não a regra aceita. Nosso mundo já é o da ONU, do Mercosul, da Comunidade Europeia, do sujeito falando num continente e nós ouvindo em outro no mesmo segundo, das repercussões planetárias imediatas, da rejeição às desigualdades em escala global. "Ah, grande coisa." SIM, coisa grande, imensa! Por pior e mais caótico, nosso mundo tem todas as condições de abraçar-se inteiro num milésimo de instante, e isso não é nada pouco. Há cada vez menos terrores que não causem escândalo debaixo do atual sol.

Por mais que os absurdos persistam, só nos chocam tão coletivamente porque a luz abundante de nosso tempo os flagra, filma, grita, fotografa, denuncia. Cada vez menos sombras, menos anonimatos, menos crimes "perfeitos", menos chances de as migalhas de pão não serem seguidas antes mesmo que devoradas. É uma era cheia de horripilâncias, e ainda assim melhor que todas as alternativas anteriores. Benditas sejamos nós, rosas do agora! "Mas e a segunda escuridão, aquela que não veremos porque murcharemos antes que Apolo deixe o seu curso visível?" Desta, nada saberemos com certeza; talvez um mundo de diferentes pandemias, novas armas ou guerras, cataclismas ainda inconcebíveis? Sim, pode ser que raie um planeta maluco assim, muito depois que nosso sol se puser; e, embora "escapando" dele, não tenho satisfação mórbida de imaginá-lo nem quero que venha. Prefiro decidir em mim que a luz continuará aumentando, aumentando e inundando tudo – a luz em vez das geleiras, a luz em vez do mar; a luz mesma dos sábios, das descobertas, das soluções. Prefiro crer que a escuridão da qual fugiremos (porém não os nossos descendentes) será apenas o auge de nosso cansaço satisfeito, a exaustão feliz de quem, combatido o bom combate, observa seu dia se pôr com ternura. O fade-out tranquilo de quem foi se despetalando na luta e sabe que muitas partes de si já estão alimentando outros solos ou ficaram dentro de muitos livros. 

Somos rosas sortudas do agora, e continuaremos sortudas mesmo após não sermos mais rosas. Até o que restará de nós ainda será poeira de estrelas.

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