segunda-feira, 29 de junho de 2020

Bagunças ambulantes

Foto profissional gratuita de bagunça, balbúrdia, cheio de cor

Azul nunca foi de minhas cores favoritas, nunca entrou e provavelmente não entrará em quaisquer listas que me definam; mas fico extasiada quando, nos programas de reforma, o reformador bota armários azuis na cozinha, especialmente aquele azul fechado, apetrolado, cor de mar na chuva. Meu vestidinho de formatura ensino-média foi azul-clarinho. Este mesmo blog é encimado de azul-céu. As variações do azul em fim avançado de tarde, quando o tom se intensifica e se limpa e se apura como uma redução de molho na panela – o AZUL! em si mesmo, gritado, pré-noturno, perfeição sem nuvens –, eis o que fico contemplando feito louca, sob risco de dar com o nariz distraído no poste. Em suma: sou formada de muitos, de recorrentes azuis, que adoro variados e lindos, mas nem por isso passo a cor na frente dos vermelhos, rosas, verdes, laranjas, turquesas no pódio de minhas representações. É isto que somos; bichos que não se entregam na primeira análise, bagunças ambulantes. Uma paleta de interesses tão própria, tão matizada, que não acaba nunca de ser entendida em vida, o que aliás nos veste de um fascínio impossível de desenhar e desdenhar. 

Ainda eu: sou pacifista até a última queratina, porém sonho (platonicamente) com uma Revolução Francesa. Tenho a França, aliás (sem laços nenhuns de sangue ou língua), como pátria do coração – mas prefiro os jardins livremente à moda inglesa. Sempre odiei matemática com todas as fúrias do ser, e vivo compartilhando as curiosidades mais fofas do planeta numérico. Me sinto culpada de matar a menor formiguinha em casa e assisto a programas de psicopata para relaxar. Jamais abandonaria o país se não fosse obrigada – e, se fosse obrigada, sairia com alívio. Nasci para o cheiro de mato, o toque na terra, flores, floooooores, vida em sossego retirado, e no entanto não tenho uma única plantinha pela mais absoluta preguiça de cuidar, nem me vejo morando a mais de dezoito passos do mercado ou da farmácia. Tomo antidepressivo por causa do magistério e, provavelmente, nunca conseguiria trabalhar em outra coisa. Não sou nem um pouco fã de madeira no piso, nos móveis, e a-ma-ri-a uma parede inteirinha de madeira de demolição. Também ninguém me conhece como fã de queijo, que sempre tratei e continuo tratando quase sempre com nojo – o que não me impede de comer puro o parmesão ralado. Ler é o amor de toda uma vida e estudar me desespera (embora aprender seja eternamente bem-vindo). Sou uma apaixonada definitiva do Romantismo, e ainda assim muito prática e pouquíssimo dada a cafonagens quando os livros se fecham. 

Nesses tipos de entretom, e em outros tantos, somos calmamente livres e podemos seguir contentes, inexplicáveis, rindo dos pequenos disparates que nos formam. Tudo bom, divertido. Mas há limites sérios, seríssimos; há points of no return que não podemos cruzar sem que a complexidade festiva descambe em incoerência de caráter. Exemplos, exemplos. Se nos propagamos antifascistas, antirracistas, antimachistas e tudo que vem nesse abençoado pacote, o "mas" é automaticamente abolido de todas as frases ligadas ao tema; nem um milésimo de sinapse deve, por um nanossegundo, relar o dedinho num "Eu não sou racista não, MAS...". MAS danou-se; o antirracismo original de fábrica, único possível, não opera com adversativas. É a mesma impossibilidade semântica de declarar "Não estou grávida não, mas às terças-feiras estou" sem ser encaminhada para o psiquiatra mais próximo. Da mesma forma, se nos assumimos cristãos, necessariamente eliminamos do rol de nossos apoiados todos os torturadores, todos os preconceituosos, todos os esmagadores de pobres, todos enfim que jogam no time adversário ao do fundador de nossa religião – e que seriam os primeiros a martirizá-lo. Ou você abraça Jesus, ou o chicoteia; não há o mais tênue, o mais microscópico espaço para MAS. Um qualquer PORÉM já avança dois quilômetros na jurisdição da barbárie. 

Somos múltiplos, difíceis, emaranhados, com metade do cérebro costurado nas entrelinhas, metade da alma debruçada nos paradoxos, porém numa certa fronteira paramos; além de determinado ponto não seguimos. Partes de nós se anulam se suas forças se deletarem num grande saldo zero. Tendemos a nos anular de todo, se insistimos em equivaler a nossos próprios inimigos.

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