quarta-feira, 17 de junho de 2020

Brincadeiras de papel

Foto profissional gratuita de brinquedo, brinquedo de crianças ...

Sempre adorei os livrinhos fabulosos em que Pedro Bloch relatava ditos e causos de seus pequenos pacientes, enxergados por ele com uma ternura e reverência que, mesmo hoje, poucos adultos sabem ter. Entre os dizeres fantásticos, irresistíveis da meninada de Bloch, destaco aqui uma definição com que me identifiquei particularmente e em que vi estampadas milhões de horas de minha infância: "Brinquedo que não deixa a gente pensar que ele pode ser outra coisa não é brinquedo. Por isso é que eu gosto mais de vassoura, que pode ser cavalo, pode ser espada de mocinho e ser, até, cabo de vassoura mesmo".

Não sei quem foi o guri ou guria que meteu essa pílula de sabedoria, mas espero que atualmente – já na idade adulta, e quem sabe se já pai ou mãe de sua própria gurizada – mantenha esse pensamento refrescante das almas inquietas. Eu não poderia concordar mais vivamente: em criança, apesar de nunca terem me faltado brinquedos tradicionais, era perita em escorregar por dentro das horas criando mil enredos protagonizados pelas folhas do jardim, por fiapos de linha que escapuliam da costura da vó, por pregadores de roupa, por gotas d'água (sim, eu brincava com gotas d'água; vê-se que nunca se tratou de uma criatura muito no eixo). Os elementos da vez se conheciam, apaixonavam, casavam, tinham filhos, toda uma saga familiar, toda uma novela do Manoel Carlos sem gente e sem Leblon. E os brinquedos nascidos brinquedos? eu também não enjeitava; mas a dinâmica era parecida, rarissimamente eu era "mãe" de alguém, apenas interventora e demiurga. O essencial: não importava se havia bonequinhos fabricados como bebês ou cachorrinhos articulados, tudo era o que eu via e não o que me disseram. De que me serviam bebês e cachorros? Nah, eu queria gente adulta para as narrativas e gente adulta era o que eles se tornavam. Pronto. Inútil mesmo acabava sendo a brinquedalhada que alguns davam por estar na moda – boneca que patinava, nadava, soprava bolha de sabão, o cacete a quatro –, mas que era imbrincável na prática: a coisa já vinha pronta, independente, livre da nossa vontade, grande demais para interagir em igualdade com os personagenzinhos miúdos, perigosa demais por causa das pilhas e baterias que davam treta, sensível demais à quebra, HORROR. Na minha meia dúzia de cinco ou oito anos, fazia tsc-tsc pensando que adulto não entendia porcaria nenhuma de criar brinquedo, já que uns saíam da máquina tão totalmente criados que, para a gente, nada sobrava. Eu que me perdia no tempo desenhando e recortando bonecos de papel, maleáveis e obedientes, podia lá querer coisa com um ser que ficava eternamente em posição de natação e nem se prestava a portar um vestidinho de noiva feito em papel higiênico? Amadores.

Cresci bem coerente, bem a mesma: amando letras e odiando números, esses duros e tesos duma figa dos quais não se consegue mudar a forma e a roupa. Matemáticas, para mim, foram sempre fábricas de brinquedos imbrincáveis, eternamente em posição presa e inaceitável em seu sim-sim-não-não. Deviam ter seus encantos para os que curtiam bonecas autobrincantes, mas eu, a mais insuspeita das rebeldes sob uma capa quietinha, nasci com zero interesse nos resultados fixos, não queria saber de ir catar beleza em número que se diverte sem nossa ajuda, feito brinquedo que não precisa de criança. Gostava de linguagem, que tanto pode ser como não ser, que só tem umas formulinhas básicas aprendidas quase no útero e o resto a gente inventa. Texto é massinha d'alma, conta é jogo eletrônico (odeio jogo eletrônico). Texto eu logo vi que podia trocar de feição, vestir e desvestir de rima, trazer enredo de lugar nenhum, mudar classe de palavra, pirar na interpretação – com limites, eu sei, eu sei –, manipular com malandragem e doçura num game sem paredes, sem cenários termináveis, sem últimas fases. Uma vez absorvida a meia dúzia de cinco ou oito regras, vambora: todo mundo livre para se esbaldar no parque, longe de margens, vigias e cicerones depois que é dada a largada. Livre, inclusive, para só se esconde-esconder se for o caso, só deitar na grama lendo a brincadeira alheia se der na telha, sem nem a obrigação de entender aquela por já estar imaginando outra – e, ainda assim, pleníssimo. Literatura é tão genial que, ao contrário do raio da boneca aquática, funciona até só no modo voyeur e consegue nos puxar de coração para todos os oceanos de outrem, sem que nessa alegre safadeza percamos ou diminuamos os nossos. Crescemo-nos, aliás, e quase todos transbordam.

Quem quiser que me acuse doida ou preguiçosa pelo que sempre terei de arredio às objetividades do planeta. Não ligo; já sou prática o suficiente por fora para ainda ter overdose interna de realidades. Sinceramente, não sei como seria cabível e respirável viver no mundo sem deixarem a gente pensar que ele pode ser outra coisa.

Nenhum comentário: