sábado, 13 de junho de 2020

Inimigos cordiais

Banco de imagens : árvore, floresta, ramo, folha, verde, selva ...

Não é difícil imaginar por que os shoppings se abarrotaram: brasileiros, clássica e historicamente, não são bons em ver pessoas. No olhar de cada indivíduo flagrado nas fotos de ontem ou anteontem (podem reparar), flutua o pensamento mágico de que "é rapidinho", "não tem problema, vou ficar bem afastado de todo mundo". Tem problema, já que todo mundo pensa que não tem problema e é inviável, portanto, que todo mundo fique bem afastado de todo mundo. Por alguns ou vários motivos muito misteriosos, muito arraigados, fazemos parte de uma cultura que traz para a idade adulta o "peekaboo!" brincado com os bebês; no delírio coletivo, se não olhamos para os demais, não os vemos – e, se não os vemos, não existem. Com a máscara no rosto, também nem existimos ali, pronto. Joga-se o jogo do contente bizarro de decidir que, se estamos numa pandemia, automaticamente não vai haver NINGUÉM no shopping além de nós, logo pode aparecer a torcida do Corinthians em peso dentro da mesma sapataria que tudo bem, tudo certo, nada se passa, lalalalalá. A fadinha alucinógena que mora em nosso coração brasileiro jura que nossa urgência era muito maior do que todas as outras urgências, e aquela chegadinha à 25 de Março praticamente nem foi saída.

É lastimável, é caótico, é preocupante, mas não posso realmente considerar que seja espantoso; fomos educados décadas e décadas, séculos e séculos para ignorar o entorno e seguir em frente, em frente. Desde o início nos desuniram, estimularam inimizades entre tribos, separaram povos de mesma língua sequestrados da África, colonizaram a terra com europeus que vinham para a rapina e o vale-tudo – não para um lar a ser amado e definitivo –, incentivaram delações premiadas, promoveram inquisições, varreram revoluções para os P.S.s dos livros de História, institucionalizaram jeitinhos e negociatas, abafaram vozes dissonantes, esconderam corpos de vozes dissonantes, plantaram na marra a ideia porcamente compreendida da "cordialidade brasileira", cultivaram ditaduras e milícias e coronéis e grileiros entre os quais é preciso não-ver-não-ouvir-não-falar, habituaram os centros urbanos à existência de pedintes que também nos habituamos a não perceber para podermos seguir em frente, em frente. De todas as formas, com todas as estratégias mais sórdidas, com todos os desdobramentos mais funestos, fomos recorrentemente antolhados: nada de se organizar com seus iguais, nada de entender seus diferentes, nada de brigar, nada de questionar, nada de lutar por todos, nada de discutir política, nada de ser agitador, cuide de si, de si somente. Se vire. Sobreviva. Pois eis-nos aqui: aprendemos direitinho. Assombroso seria que, depois de tanta martelada, nos iluminássemos não mais que de repente e percebêssemos que só podemos sobreviver em conjunto.

Ninguém precisa vir de "aaah, mas nem todo brasileiro...". ÓBVIO. Nem todo brasileiro. De maneira geral, porém, somos frutos involuntários dessa história de violência, submissão ao poder e estímulo à indiferença, e até a malandragem que desenvolvemos por defesa nos tornou escorregadios para o bem e para o mal. "Puxa, mas o brasileiro é tão generoso." Sim, é generoso – lembro-me de ter comentado sobre isso outras vezes no blog –; somos generosos, sim, mas especialmente na caridade de última hora, nas emergências, que costumam ser nosso desafogo para conseguirmos mostrar como somos legais sem termos de nos estruturar em longo prazo. Enxergamos quase que só quando não há alternativa, reagimos e ajudamos à flor da pele; alimentamos, vestimos, calçamos, damos internet e notebook para alguns casos focados na mídia, temos corações ótimos sem dúvida – e ainda assim resistimos, muito forte e coletivamente, a ser coletivos de fato. Incontáveis de nós ainda se defendem da política como de um capiroto, recusando-se a tentar limpar, pela participação consciente, aquilo que consideram distante, alheio e sujo. Inúmeros entre nós põem a mãozinha no coração para cantar o hino, veneram cores numa bandeira e não gritam para proteger o maior dos maiores símbolos de um país, que é seu povo (principalmente os descendentes mais diretos dos povos originais). Muitos, muitos, muitos (excessivos), seja por falta de educação formal ou familiar, de recursos ou de orientação, de tempo ou de condições – ou simplesmente por egoísmo de elite –, não germinaram empatia bastante para se responsabilizar pelo outro desde a base e as minúcias, desde o papel guardado na bolsa que não vai para o chão, desde o voto dado pensada e pesquisadamente, desde a máscara colocada do jeito certo, desde a saída evitada se possível. Uma quantidade exagerada dentre nós continua habitando não apenas uma terra de ninguém, mas uma terra de ninguém mais. 

São já cinco séculos (e um quinto) de tanto sono eterno em berço esplêndido, de tantos grilhões que nos forjaram, que virou especialidade da casa nosso peito desafiar a própria morte.

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