sábado, 27 de junho de 2020

Hora da chamada

Gerbera Gotejamento Molhado Gota - Foto gratuita no Pixabay

Amo quando Manoel de Barros diz, num poema apropriadamente sem nome: "O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a/ imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás/ de casa./ Passou um homem depois e disse: Essa volta que o/ rio faz por trás de sua casa se chama enseada./ Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que/ fazia uma volta atrás de casa./ Era uma enseada./ Acho que o nome empobreceu a imagem". 

Não há que negar: há nomes que não eram para ser. Pororoca. Batizar um beijo líquido feito de dois sabores, um abraço de peitos d'água, um entrelaçar de forças úmidas com esse título que criança dá risada na escola – po-ro-ro-ca! Me dói o fato de ser tupi, língua tão melódica, mas tupi também erra, e esse é crime de lesa-poesia apenada em flagrante. Como era para ficar, não sei (entreaguadouro? fluvimaré? hidromeneu?), mas quase que cabia uma licitação de novos batismos, ou uma cúpula de poetas para discutir esse e outros rótulos que são matéria de poema, não de costume ou geografia. Também: atol. Nome pocket e prático, concordo, mas sem potencial de ser a lindeza que é; lembra bala pra hálito ou substância de nebulização (tem atol, mentol e eucalipto, freguesa). Que tal "anel de coral", "anel coralíneo"? Outra: conurbação, espécie de pororoca de cidades que merece mil parabéns em termos de feiume. Mas havemos de convir que urbanices muito crescentes vão perdendo mesmo o viço poético, então, sabe? sugiro nada. Já para a pobre gérbera e o infeliz ranúnculo, mimos de flor em que desalmados pregaram esses nomes de Comensais da Morte, eu aconselho "margarida matizada" e "quase-rosinha", respectivamente. Título de chamar flor é responsabilidade seríssima em termos literários, não sai assim pronto de laboratório, quero nem saber o que diz em latim ou quem homenageia. Flor a gente crisma pensando já em verso, em figura de linguagem, em texto do Alencar; a gente batiza devagar, com aguinha de orvalho. 

Já tem substantivos que nascem tão prontos, significante e significado tão colados em beleza, que parecem mentira do dicionário, milagres do idioma. Eu amo aljôfar, nenúfar, nácar, âmbar, áster, amarílis, íris, oásis, miosótis, girassol, lisianto, alamanda, capuchinha, madressilva, madrepérola, cânion, líquen. Têm esses vidros, essas transparências de rio que faz volta atrás da casa, umas sílabas repetíveis em cerimônias com fadas e demais florestices, uma reverência de imitar a cor e a forma do nomeado. É imensamente lindo aprender palavra que dá pinote no coração, revelando o quanto sempre ali esteve na coisa que a recebe, presente, vivente, só não colocada em fonema. Às vezes  eu bem queria essa função, a de achar e casar nomes bonitos com o que deveria tê-los ou ser tido por eles – incluindo gentes. Sim, mesmo as (internamente) não bonitas. Quem sabe se não é desacerto da vida de dentro com o "abre-te, sésamo" que corretamente a escancara?

Os poetas, creio, não saem deste serviço: vão testando toda a linguagem na fechadura das coisas até sua genuinidade, sua autossemelhança se desabotoar inteira.

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